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SUPPA, NO PAÍS DO VOALÁ

Ela sempre gostou de desenho, por isso se divertia quando a mãe, pintora, que dava aula para crianças num ateliê enorme em sua casa, a obrigava, e ao irmão, a assisti-las. E seus primeiros personagens foram criados para ilustrar as apresentações que seu pai, funcionário da IBM, fazia com auxílio do retroprojetor. Desde cedo, portanto, sabia que faria algo ligado às artes.


Nascida em Santos, em 1957, ali Vivian – que assina apenaso sobrenome italiano Suppa, que a revista Pais e Filhos disse que "tem cara de apelido" –, frequentou o colégio Stella Maris até os 11 anos, quando a família se mudou para São Paulo e a transferiu para o Liceu Pasteur, um colégio cuja rígida disciplina se corporificava logo na entrada: ali uma “tia” postava-se no início de cada período, encarregada de impedir que qualquer traço de maquiagem das adolescentes chegasse às salas de aula. “A gente tinha de lavar o rosto ali mesmo, numa pia estrategicamente colocada ao lado da porta." Quanto ao cumprimento da saia do uniforme que descreve em detalhes, estica os braços para indicar bem abaixo do joelho, fazendo um ar de quem não o suportava, antes de concluir: “Não era um colégio para mim, porque fui muito levada, sempre tive problema de comportamento. Durei dois anos”. Expulsa, o castigo veio com a transferência para o Nossa Senhora Aparecida, em Moema [também na Zona Sul], escola só para meninas, de freiras franciscanas.

O suplício, no entanto, acabou logo: com a aproximação do vestibular, foi transferida para um mundo novo, o colégio Objetivo, e aí veio “a descambada total, porque a gente podia fazer o que quisesse. Lembro que era permitido fumar, então comecei a fumar, mas hoje já parei. Tudo ali era supermoderno, havia aulas no auditório, os professores eram excelentes e a gente aprendia, na decoreba, é verdade, mas saía da aula sabendo; com as brincadeiras que eles faziam a gente era tomado, não dava para conversar com o colega. Era tudo muito divertido” [e as boas gargalhadas que ressoam pelo apartamento em que conversamos numa tarde de março parecem ser a melhor prova].

"Como ainda não sabia/ O que me fazia feliz/ Me formei em Arquitetura/ E fui correndo pra Paris"*

Em busca da carreira, ligada às artes, logo foi advertida pela mãe da inexistência, aqui, de um boa faculdade de desenho. Portanto, achando que em arquitetura teria um pouco de desenho e nenhum cálculo, essa foi sua primeira opção. A segunda, sociologia, que adorava e cursou um ano, enquanto fazia cursinho. Aprovada, logo foi estagiar em um escritório de arquitetura, onde fazia caricatura de todo mundo e percebeu que esse era de fato seu verdadeiro interesse. “Arquitetura é lindo para estudar, amo os estilos, quando visito outros países olho tudo, mas é física, é matemática, tudo é cálculo. E percebi que não dava para aquilo quando via os arquitetos fazendo os cálculos das vigas, da quantidade de cimento, e concluí que seria uma péssima arquiteta.” Ao se formar quis sair do país, onde “nada acontecia”, e pensou em uma pós-graduação em urbanismo, em que imaginava poder associar suas duas paixões: sociologia e arquitetura.


Concluído na mesma ocasião o curso de italiano na Casa de Dante, ali mesmo ela obteve informações e acertou um curso em Roma, que deveria começar em setembro.

Com certo tempo até o início das aulas na Itália e uma amiga morando na França, decidiu fazer-lhe uma visita antes de se apresentar na escola. Entretanto, ao chegar em Paris, apaixonou-se pela cidade e desistiu de Roma, que conheceu depois, achou linda, mas onde percebeu que não gostaria de morar. “E não me arrependo”. Enquanto descobria a cidade, o tempo foi passando e a hora de se apresentar à escola romana chegou, e passou. Não sem antes ligarem várias vezes à sua mãe, perguntando pela aluna. "Bati o pé, disse que ia ficar na França [acima] estudando francês e ela foi clara: ‘Quer ficar em Paris? Então você tem seis meses [até dezembro] para arranjar uma escola, ou eu vou te buscar. Você não vai ficar aí sem estudar, minha filha!’.”

"E foi lá que eu descobri!/ Desenhar era tudo o que eu fazia/ E outra vez me formei/ Desta vez em Bandes-dessinnées/ (Nome chique pra desenho!)/ Na Ecole d’Arts Appliqués Duperrè" [à esq.]*

Aproveitando a estrutura de ensino francesa, ampla e muito bem montada, e com um diário desde sua chegada na forma de quadrinhos embaixo do braço, Suppa foi a todas as escolas da relação recebida no centro de orientação. E em todas ouviu a mesma recusa, porque estava com 24 anos e o limite era 23. De início achou que os nãos eram por causa de seu francês ruim, depois que seus desenhos não eram bons. Aflita com a aproximação de dezembro, e desiludida, chegou à ultima escola sem saber que era a melhor e a mais difícil de entrar. "Não que a essa altura eu soubesse dessa reputação toda. Conversando comigo, não sei por que cargas d’água, a moça, depois de me dizer que havia o problema da idade, me perguntou: ‘Mas você não se formou em nada até agora?’. Quando respondi que era formada em arquitetura, ela me disse que então não havia problema, porque não se aceita se a pessoa até os 23 anos não tiver nenhum estudo”. Essa era a pergunta que ninguém lhe fizera.

"Tive a sorte de estar ao lado de grandes mestres da arte da ilustração, que me deram a base do meu trabalho"

Tendo visto em todas as livrarias da cidade, “nas Fnacs da vida” como disse, muita gente lendo HQs a moda da época, disse que desejava fazer esse curso. Tranquilamente, a moça informou que o professor responsável precisava aprová-la e mandou chamá-lo. Monsieur Pichard [Georges, à dir., referência para a moderna HQ francesa, criador de séries de sucesso como Blanche Épiphanie e Paulette] apareceu, olhou os desenhos, “que hoje vejo o quanto eram péssimos, e disse para eu escolher as disciplinas. ‘Você é uma aluna com status privilegiado, pode faltar, não vai entrar na lista de chamada e pode frequentar as aulas que quiser’. Não acreditei, porque tive direito a fazer tudo, de graça, de nu artístico a moda, e frequentei todas as aulas, sendo a principal a dele, um nome superconhecido que na época desenhava para o Wolinski [Georges], que então só escrevia. Olhando para trás, talvez tenha sido ali que o desenho entrou definitivamente na minha vida, porque se o Pichard achou que tinha algo naquelas páginas, então é porque tinha!"

"E não parei/ E de tudo eu ilustrei/ Até com o Comandante Jacques Cousteau/ eu trabalhei"*

“Foi um curso de quatro anos, com aulas até às 15h, 16h. Na sala de HQ havia alunos. Como a escola tinha muita reputação, empresas e agências de propaganda iam lá pedir estagiários. O Pichard me disse que, como eu era a única mulher, estaria ‘sempre em primeiro lugar. A primeira oportunidade que surgir será sua’. Fui muito privilegiada, porque trabalhei em muitos lugares, com desenho animado, com HQ e, em menos de um ano, fui parar na empresa de Jacques Cousteau. Na verdade, ele precisava de uma estagiária colorista. Aí o Pichard indicou a filha dele Marie-Nöelle, ótima, que era minha amiga, e eu. Quando chegamos lá, havia mais algumas pessoas, e fui escolhida."

"Na verdade quem me escolheu foi o grande ilustrador das HQs do Custeau, o Dominique Sérafini [à esq. foto: site oficial], uma figura, que, mais tarde, disse que ao me ver (nessa época eu usava lenço na cabeça, com um laço, tinha de todas as cores, com todos os tipos de estampas), pensou: ‘É ela’. E me escolheu por causa disso. Nem olhou os meus desenhos."

"Eu não sabia nada, não era colorista, não tinha experiência, diferentemente da Marie-Nöelle, e ele teve de me ensinar tudo. Foi ótimo. Quando ele voltava das viagens mostrava os filmes pra gente, foi fantástico. A equipe era pequena: no prédio perto do Arco do Triunfo havia um andar com sete pessoas e, lá perto, numa vila linda de morrer, onde ficava a casa dele, no andar de baixo havia um pessoal mais próximo que cuidava dos filmes.”

Com Jacques Cousteau passou os quatro anos seguintes como colorista dos gibis e ilustradora da Calypso [revista homônima de seu navio de pesquisas]. "Até maquete para ele eu fiz [à dir.]: o Cousteau soube que eu era arquiteta e quis que montasse uma miniatura do RV Calypso, brindando com ela quando ficou pronta [à esq.]. Na infância, eu assistia em preto e branco aos filmes dele; quando imaginaria que iria conhecê-lo assim?"


Outras portas se abrem

Concluído o curso e quando as HQs acabaram ela começou a procurar frilas. No meio do caminho, trabalhou no Crédit Lyonnais, onde durante um ano fez toda a comunicação interna da empresa até que o diretor do departamento, o nigeriano Monsieur Taieb, cuja secretária pediu um ano sabático para ir à África, lhe propôs um acordo: “Fiquei um ano no lugar dela, recebendo seu salário e trabalhando só meio período. Quando ela voltou, reassumiu sua função e passei a trabalhar muito com publicidade, sobretudo com revistas femininas e de família, como Elle, Marie Claire, Cosmopolitan, Famille Magazine, Famille et Education, Biba, Telerama e Epok (FNAC), entre outras na França, Allegra, na Alemanha.

“Mas não fazia livro, porque meu desenho não era para criança. Na revista infantil eu ilustrava a parte dos pais, meu desenho era como esse que faço hoje para adulto, mas naquela época na França isso não se encaixava, porque os desenhos para crianças eram redondinhos, feitos com aquarela, ou a lápis. Tentei, mas era impossível. Só fui fazer mesmo desenho para criança dois anos antes de voltar para o Brasil, porque houve uma revolução e começaram a chamar o pessoal de publicidade para o livro infantil, o pessoal que fazia caricaturas. E a cara do livro infantil mudou para o que é hoje."


Seu trabalho, essencialmente publicitário, [como à esq. para a revista Sante] a obrigou a ter um agente, uma exigência na França. O primeiro não pagava direito, roubava os clientes e quando um desenho era publicado várias vezes não nos avisava. “Quando descobri, saí, outras pessoas também, mas muitos ficaram, porque é muito difícil arrumar um agente, e ele era conceituadíssimo, todo mundo o conhecia. Em seguida tive uma agente, muito legal, com poucos representados, cada um com um estilo, diferente do primeiro que tinha muita gente com estilo parecido, o que para ele estava ótimo, porque ganharia de qualquer jeito. Fiquei com ela até uns dois anos depois de voltar para o Brasil, quando uma amiga, Anne Marie Gardinieri, diretora artística numa empresa, resolveu se tornar agente, então optei por ficar com ela, com quem estou até hoje. Tenho confiança total nela que sempre está tentando arrumar trabalho para mim.”

A aproximação do livro infantil

Em Paris, Suppa fez uns quatro livros. “As editoras não aceitam agentes, então tive de me apresentar. E tanto lá como aqui não se paga bem. E se segue muito a moda. Quando alguém começa a fazer algo, todos seguem. Uma época foi o desenho hiper-realista, feito com aerógrafo, e todos os ilustradores fizeram. Eu fazia o meu desenho, não era hiper-realista, decidi manter meu traço, só que feito com aerógrafo. Essas modas duram um, dois anos, porque uma hora saturam e ninguém mais quer. Aí todos os ilustradores tiveram de se adaptar, claro, e foi aí que tive minha chance, porque não tinha mudado nada, e percebi que era hora de ir ver as editoras. Depois a Anne Marie me apresentou para a Nathan, para a qual fiz Petites Comptines pour tous les Jours, Un prince pour Lilas e Yeux de Vipere, e mais tarde desenhos para adolescentes, para La Martiniere, Gallimard, Hachette, Mango."


A dedicação ao aprendizado

Entre a chegada a Paris e intensa atividade profissional, Suppa se preocupou muito com o aprendizado do idioma: primeiro fez um curso de quatro horas diárias; depois, quando já falava bem, outro, também intensivo, de um ano para aprender a escrever direitinho. E aproveitou todas as oportunidades de aprimoramento em cursos de artes, figurino, cenografia, gratuitos, promovidos pela prefeitura. "Nas férias ia muito para a Itália e Grécia, levava aquarelas e desenhava as paisagens. Me esforçava muito porque é assim que se aprende. Também procurava sempre novas técnicas, como a colagem, até chegar ao computador". Na França teve um Minitel, um minicomputador fornecido a todos gratuitamente pelo governo, em que se podia fazia consultas e comprar tíquetes para teatro. Depois, já no Brasil, veio o primeiro Mac, aquele grande, verde, que tenho até hoje.


Na próxima postagem Suppa fala de sua volta ao Brasil, do trabalho com autores nacionais, de suas exposições, bonecas, peças de decoração e trabalhos de sua autoria.


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Suppa, ilustradora artista plástica e escritora, recebeu vários prêmios, entre os quais: em 2003, Abril de Melhor Ilustração, revista Nova Escola; em 2005, o 200 Best Illustrators Worldwide, Áustria, e o Maison des artistes, Illustration; em 2006, o Jabuti, Melhor Ilustração de Livro Infantil; em 2007, Melhor Ilustração de Livro Infantil, FNLIJ, e Jabuti, Melhor Livro Infantil.


Entre mais de 120 livros publicados, 90% deles para o púbico infantil, os de sua autoria, até agora, são: O nariz de Anaíz e Elvira uma vampira? (Larousse); Mesmo assim Martin! (Global); Até que enfim, Serafim!, Alfredo não tem medo! e Certo ou errado, Dr. Eduardo? (Lafonte); O fio (Escala/TUCCA, Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer); No país do Voalá (Editora do Brasil); …E o lobo mau se deu bem (Giramundo), …E o príncipe foi pro brejo (Folias de Ler); Se eu não fosse, eu seria…, Aquele beijo que eu te dei e Só não vê quem não quer (Callis) e Um mosquito esquisito (revista Toca).


* Textos de Suppa.




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