Nesta segunda parte de nosso bate-papo, Laura Bacellar trata dos leitores e do quanto parece difícil entender quem ele é, seus gostos e preferências; o que se “esconde” atrás de numerosas decisões e opiniões de editores e críticos, inclusive em sua concepção do que vem a ser literatura; a quem a maior parte das resenhas na grande imprensa se dirige; e, em sua opinião, o que se poderia dizer aos jovens para que descubram o quanto os livros podem ser interessantes.
A democracia em ação
Sempre achei, e agora acho mais do que nunca que, apesar de todo o chororô, o que vemos à nossa volta é o livro como resultado da democracia em ação.
Ninguém é obrigado nem a comprar, nem a ler. No Brasil não há pressão para ler. Lê quem quer, o que quer, quando quer e compra se quiser: é uma democracia, a perfeita liberdade. Então as pessoas compram Cinquenta tons de cinza, Crepúsculo, Diário de um banana, Jogos vorazes, de qualidade razoável, e os correspondentes nacionais, Depois dos quinze e similares, que têm muita aceitação e são, na opinião de muitos, de qualidade literária duvidosa.
Mas quem comprou? Quem quis. Se as pessoas quiseram comprar é porque, de algum modo, isso é pertinente.
Se há uma elite que acha isso um nada, tudo bem, para ela não serve, mas para muita gente quer dizer alguma coisa. E o editor tem de lidar com isso. Ele pode até ser um editor elitista, que é o caso daqueles em editoras acadêmicas, que se dirigem à elite, a pequenos nichos, a fatias da população que não são a média, como quem tem doutorado. Mas, aqueles que não podem, têm de olhar para a população como de fato ela é.
O gosto do público
Portanto, por mais que se tenha ideais – o livro tem potencial de transformar as pessoas, acredito nisso e por isso decidi trabalhar com livros –, as pessoas fazem o que querem. Não há como forçar ninguém a ter uma cultura sofisticada, a ler clássicos ou literatura experimental. Não se pode obrigá-las: elas consomem o que querem. E muita gente pensa que o mercado editorial é regido pelo marketing. Não é! É regido pelo gosto do público. Se ele gosta daquelas coisas, é isso que o editor vai publicar. O editor corre atrás do público.
Na leva atual de best-sellers, por exemplo, A culpa é das estrelas [6º livro de John Green] me parece o caso de um editor que, tendo em conta o gosto do público, pensou: “Vou dar aos leitores um algo a mais”, e obteve sucesso. Ou seja, ali há um editor muito sagaz, que pegou o potencial do autor, da obra e produziu algo que não é um lixo. Para mim, esse é o trabalho do editor. Ver o que é possível, o que tem pertinência, o que as pessoas querem. Essa é uma leitura importante: encontrar o autor que tem potencial de falar, de se conectar com seu leitorado.
A relação da imprensa com o mercado
Parte da imprensa e parte dos editores, inclusive, preza uma cultura mais elitista, apurada, complexa. Não tenho nada contra. Só que é preciso ter consciência disso. Se estou me dirigindo a um grupo relativamente reduzido, ótimo. Se não estou, o que vai acontecer? O que aconteceu com os jornais, onde há poucas resenhas porque elas não são pertinentes. As pessoas não querem ler o último ensaio sobre a Escola de Frankfurt [acima o Instituto de Pesquisa alemão], porque ela não quer dizer nada para a maioria. Por mais chique, mais interessante que seja para algumas pessoas, para a maioria não significa nada, essa maioria nem entende o que está escrito ali.
O que vejo é uma série de editores, de produtores de cultura, de autores, inclusive, e parte da imprensa, vivendo num mundo cultural de elite. E acham que isso é tudo. Há elites variadas em diversos lugares. Mas é a elite, a minoria. Se o jornal quer falar com essa elite, continue assim; se não quer, mude o tema, o tom, a linguagem, mude tudo.
Antes a maioria simplesmente não tinha acesso aos livros, não os comprava. Ou, se comprava, o fazia a contragosto porque havia pouca oferta. Agora que isso mudou, o gosto da maioria se revela pelas vendas. E a imprensa ainda continua com essas resenhas que, na minha opinião, são ridículas. Na Piauí, ridículo; na Bravo!, ridículo [em 1º/8/2014 a Editora Abril divulgou a "descontinuação" de várias revistas, entre as quais a Bravo!]. São coisas interessantes, mas para um grupo pequeno. Quando muito há uma 20 mil pessoas no Brasil que entendem o que se diz ali e querem comprar isso.
Uma população com níveis e interesses culturais bem variados
Em contrapartida, há blogs de adolescentes, de feministas, de humor, de tudo e nada, que criticam as obras que acham pertinentes e têm muito mais acesso, mais leitura, porque conseguem falar com públicos mais amplos. Aquela primeira abordagem é reduzida a um grupo pequeno, a segunda, não.
E o problema no mercado hoje é que aquela abordagem não se sustenta economicamente, vide os jornais fechando, vide as editoras fechando. Vide a Companhia das Letras abrindo selos pop. Se a maior editora do país, a mais chique, a que tem os autores mais badalados, cheia de Nobel no catálogo, abre um selo Paralela, ou selo sei lá o quê, para publicar coisas pop e bobajada, é porque é necessário. Porque o prêmio Nobel não a sustenta. E aqui há algo muito interessante: mesmo quem tem capacidade de ler sobre a Escola de Frankfurt, quando tem escolha, lê A culpa é das estrelas , porque a elite pode descer do pedestal e ler essas distrações; mas poucos podem fazer o percurso ao contrário. O mercado hoje é realmente democrático, e as pessoas precisam deixar de ser tão elitistas e passar a olhar para o que nos rodeia: uma população com níveis e interesses culturais bem variados.
A irritação dos editores
Muita gente implica com isso. Acho engraçado um editor se irritar porque A culpa é das estrelas vende. Não adianta ficar irritado. Precisa olhar e ver: “O que está acontecendo? Por que Paula Pimenta vende?”.
Isso é o Brasil, é verdade, não está sendo fabricado. Há uma moçadinha que adora Paula Pimenta. Thalita Rebouças [à esq.] quando vai à Bienal, provoca filas enormes, com gente gritando. E se isso acontece é porque ela é pertinente. Não adianta achar que não é, porque é pertinente para alguém. Por isso vende, e muito! Há várias dessas jovens. Em vez de ficar bravo é preciso ver o que está acontecendo.
A Paula Pimenta [à dir.] começou a escrever aos 15 anos e não
escreve tão mal. Tem uma pegada, escreve sempre, tem um leitorado gigantesco, um blog acessadíssimo. Se formos desprezá-la, desprezaremos uma parte da humanidade só porque ela tem um gosto diferente. Isso é o cúmulo. É não querer ver a realidade. Eu não gosto, mas há quem gosta. Portanto, se eu for editora de juvenis, tenho de considerar isso, ou desistir de ser editora. Isso é obrigatório, está sendo demonstrado.
O que o leitor do Acre quer ler?
Antes era possível ir levando porque, de certa forma, havia menos acesso à cultura. Agora a cultura está mais fácil e as pessoas podem comprar todo tipo de livro, em qualquer lugar, nem precisam ir à livraria. O sujeito lá no Acre pode comprar o que quiser. E o que ele quer ler? Não quer ler sobre a Escola de Frankfurt. Nãããão. Quer ler Jogos vorazes, porque viu o filme. E não está sendo manipulado. Se estiver, está sendo tanto quanto todo mundo. É uma coisa global. Há gostos que se espalham pela cultura, democraticamente. Não vejo ninguém controlando isso.
O nariz enfiado no livro
Tenho um amigo, Sergio Miguez, cujo hobby é fotografar pessoas lendo na rua, no ônibus, no metrô. Cada vez que posta as fotos, a gente vê as pessoas com o nariz enfiado num livro. E, quando consegue, ele diz o que estão lendo. Varia para caramba, há muitas coisas pop e também livros exóticos, antigos [foto de Marcia Minillo, na página Sergio, com o título "Olha só que lindo"; passageiros no trem da CPTM].
Por que Paulo Coelho vendeu? É a pertinência, que muda. Atualmente, ele não mais pertinente, não fala, não toca, não movimenta. Mas hoje há pessoas semelhantes, fazendo algo similar, e o bom editor é aquele que vai lá e diz: “É isso aqui que movimenta”.
O sonho das mulheres
O Cinquenta tons de cinza, por exemplo, li para dar parecer. A autora [E. L. James, ao lado] tinha passado dos 40 anos, estava divorciada, aborrecida. Esse livro é uma espécie de resposta à mulher educada para ser romântica, para esperar tudo do parceiro e foi várias vezes desapontada. Já li todo tipo de crítica sobre esse livro. A minha é: “As mulheres ainda esperam o príncipe, embora hoje ele tenha de ser sexy. Mas ainda esperam que ele dê tudo: dinheiro, sexo, comida, viagem, carrão... Portanto, em vez de ficar com raiva delas, preciso entender que essa é a nossa cultura. Eu não sou assim, mas leio isso que está à minha volta. Esse é o sonho das mulheres.
O livro não faz sucesso se não tiver lá no cerne algo que provoca, que é importante para muitos. Mesmo a literatura mais básica, mal coordenada, que é o caso de Cinquenta tons de cinza, supermal escrito e que se beneficiaria de uma edição, tem esse cerne. E muitas vezes nem é uma mensagem intelectual, mas emotiva. Quando pega milhões de pessoas, trata-se de algo que permanece. O editor tem obrigação de ver isso.
O quadrado do quadrado: Crepúsculo
Outro exemplo é Crepúsculo, também um megassucesso mundial. Crepúsculo é o quadrado do quadrado, é a tradição. O livro é basicamente a história de uma menina que quer se manter virgem e do menino que a deixa virgem. O que há aí é uma discussão sobre a virgindade em pleno século 21, e um monte de gente achou pertinente. Essa é a nossa sociedade. Adolescente virgem ou não? Como lidar com a sexualidade emergente? Ah, a sexualidade é um negócio apavorante, é um vampiro; por outro lado, ele é o grande amor da vida dela. Isso está falando para milhões.
Simultaneamente, esse imenso público também acha pertinente Jogos vorazes, que tem uma adolescente assassina. Coletivamente a cultura está lidando com várias imagens e várias mensagens, mal ou bem, absorvendo várias coisas. Então não acho que dá pra gente julgar, se irritar, querer acabar com isso, mas sim oferecer mais.
E o que está por trás da venda do livro é uma pessoa que quer ler aquilo sem ser obrigada. Ela quer! É pertinente! Ela vai até um lugar, até um site e gasta seu rico dinheirinho para comprar e ler. Isso é incrível. E se quer comprar e ler aquilo e não outra coisa é porque aquilo faz sentido para ela.
Você não imagina o que há num livro!
O livro é visto de forma elitista, e detesto essa visão. Amo livros. Fui daquelas crianças que liam tudo. Primeiro lia todos os livros que me davam, depois ia à estante dos meus pais, pegava alguma coisa que achava minimamente legível e lia. Lia de tudo.
Quando fui para a Inglaterra, era babá de uma criança de um ano de idade que dormia o tempo todo, num vilarejo que ficava a mais de uma hora de Londres e do qual só era possível sair ou de ônibus, três vezes por semana, ou de carona, ou de bicicleta. Uma vez por semana, um ônibus-biblioteca da cidade-sede do condado, chamado Colchester, chegava lá cheio de livros. Quando descobri fui aos céus. Eu podia tirar – gratuitamente – 4 livros por semana, e passei um ano lendo 4 livros por semana. Li pra caramba e todo tipo de coisa: desde literatura considerada mais clássica, sofisticada, literatura inglesa, Virginia Wolf inteirinha, Oscar Wilde inteirinho, até um montão de coisas pop.
Acho que não se pode fazer sermão para os outros verem nos livros o que gostaríamos de ler. Cada um lê o que quer.
Aliás, se eu fosse fazer um discurso para convencer os jovens a ler, ele seria: “Vocês não imaginam o que há nos livros! Vocês não imaginam o sexo pervertido que há nos livros. Vocês não imaginam que podem aprender a fazer bombas, a fazer revolução, podem aprender a assassinar pai e mãe”. Esse é um bom argumento, na minha opinião. Porque as pessoas acham que ler livros é ler Eça de Queirós, e os jovens não vão ler isso nunca, porque não é pertinente. Mas, quando se diz: “Você pode aprender a matar a sua mãe”, a pessoa pode achar que já ficou mais interessante. Ou, vá ler O crime do Padre Amaro porque no fim você vai ver o quão filho da puta aquele padre era [abaixo, reprodução da 1a. edição portuguesa].
Quem quer ser elevado?
Qual é o prazer de ler literatura policial? Ficar imaginando quem você mataria e como. Você lê e pensa: “Poxa, esse método é eficiente”. Se as pessoas falassem dos livros assim, porque os livros atendem aos nossos instintos mais básicos, por exemplo, de matar alguém, os jovens leriam, se divertiriam e NÃO matariam. Isso é que deveria ser dito, em vez de: “Ah, vamos ler, porque ler edifica, eleva”. Que chatice. Quem quer ser elevado?
Dostoiévski versus Tolkien
Esses livros se tornaram clássicos porque tinham um cerne pertinente para muitas pessoas naquele período. São pertinentes por mais tempo porque o autor atinou com algo realmente importante. Mas não é para ficar com “Ohs, ahs...”. É importante para você se divertir, se tocar. Não para ficar analisando a forma, arrotando citações. Cada um que faça o que quiser, mas acho isso uma chatice. Para mim se lê por prazer. Tenho prazeres variados, alguns que poderiam ser considerados mais refinados e outros muito básicos.
Quando era criança, li ficção científica e fantasia a rodo, era fã de Tolkien [à esq.], O senhor dos anéis, com oito anos. Me dizer que isso é subliteratura me irrita muito. Dostoiévski é literatura, Tolkiené subliteratura? Ah, vá dar uma volta na esquina.
Boa parte de quem pensa os livros não foi leitor por boa parte da vida ou quer aparentar só ler alta cultura. Não acredito que alguém consiga ler só Dostoiévski [à dir.]. Li, gostei de algumas coisas, de outras não. Você lê e acha legal, mas tem horas que acha pouco pertinente.
Harry Potter é uma demonstração de como os editores erram. Aqui ele foi recusado por nada menos que 11 editoras. Para a Rocco aceitar, a agente literária se desdobrou, arrancou os cabelos; ninguém queria, porque achavam boboca. Muito bem! Foi publicado e fez esse sucesso mundial, foi um dos primeiros casos de sucesso global ao mesmo tempo, instantâneo. O que aconteceu? A meninada que tinha 10, 11onze anos e começou a ler Harry Potter, que não é tão ruim, tem seus méritos, primeiro leu Harry Potter inteiro, vários livros e livros grandões, e depois se tornou leitor. As pessoas deviam pegar essa J. K. Rowling e beijá-la na boca, porque fez milhões de crianças se transformarem em leitores.
Quem lê Jogos vorazes e A culpa é das estrelas? Quem leu Harry Potter na infância. Porque se acostumou a ler uma literatura interessante, de fantasia, acessível, com movimentação e começou a pedir mais [fãs brasileiros no lançamento do 7º livro da saga, em shopping de São Paulo; fonte G1].
Por isso é uma bobagem dizer “Não vou dar isso pro meu filho”, porque as crianças se tornaram leitores, e de coisas variadas. Esse pensamento é um erro dramático: julgar muito inglês ou muito raso. Despertou a fantasia, despertou a vontade de ler, tá valendo.
Os profissionais da área
Há muita gente que não sabe o que faz e isso é ruim. As editoras têm cada vez menos dinheiro para dedicar a cada livro, então contratam qualquer pessoa. Vejo gente muito assoberbada de trabalho ou que ocupa posições para as quais não tem nenhum preparo, é muito ignorante, faz perguntas inacreditáveis. Estamos num momento em que o mercado não está pagando bons profissionais, pelo menos não na área de edição.
Perspectivas
A tendência, por enquanto, é um acirramento do que é problemático: mais obras, mais gente sem saber o que fazer, mais bobagens, mais coisas fora de foco, até que o pessoal comece a ver o que funciona, que o autor perceba: “Vou publicar meu livro e não vai dar certo”. “Vou gastar dinheiro com a minha editora de fundo de quintal e não vou vender nada”. Acredito que haverá um processo de depuração até que os próprios autores se tornem editores ou que haja mais editores editores de fato, não meramente publicadores de livros, ou seja: editores com capacidade de ler o público e de trabalhar a obra com o autor para que se torne mais adequada, mais pertinente. Até isso entrar na consciência e se buscarem melhores formas vai demorar um pouco [abaixo Marcelo Duarte, autor do Guia dos curiosos, que depois se tornou editor].
Tenho impressão de que vai haver uma compreensão de que, pelo menos nos livros, há uma democracia da cultura. Haverá uma limpeza quando as pessoas começarem a perceber, a olhar para a outra ponta. Não se pode olhar só para si, para aquilo de que você gosta ou quer fazer. É preciso olhar o que é significativo para quem, em teoria, vai ler.
Creio que o mercado vai ser mais incisivo nisso, que as pessoas vão quebrar mais a cara ainda até começarem a perceber isso.
Tanto o editor quanto o autor precisam deixar de ser autorreferentes.
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Laura Bacellar ocupou todas as funções editoriais – de produtora na
Hemus a editora-chefe na Brasiliense. Fundou e dirigiu o primeiro selo editorial inteiramente dedicado às minorias sexuais, Edições GLS. Já foi editora em casas pequenas, como a Mercuryo, e grandes, como a Scipione. Sua especialidade é não ficção, mas edita também paradidáticos, literatura adulta, literatura infantil e interesse geral. Escreveu três livros como ghostwriter e um com seu próprio nome Escreva seu livro – guia prático de edição e publicação, pela Editora Mercuryo. Adaptou cinco clássicos do inglês, Robinson Crusoéo, Drácula, Sherlock Holmes, Frakenstein e Rei Artur, para a editora Scipione, e escreveu uma outra obras infantil, Mini Larousse da educação e do trânsito, para a Larousse do Brasil, em 2005. Mantém o site www.escrevaseulivro, bastante usado por editoras para instruir autores que as procuram. Atualmente, trabalha como free-lancer para várias grande editoras.