A pequena bandeira do Brasil posta em sua mesa no início da Copa continuava ali em outubro, por inércia. “É o memento mori”, explica ele, entre risadas, usando a expressão latina característica do período barroco: em tradução livre, “lembre-se de que é mortal". Nada mais adequado depois do 7 x 1.
Editor-executivo da Editora Unesp desde 2001, o descendente de espanhóis Jézio Hernani Bomfim Gutierre fala da trajetória de mais de 25 anos da casa publicadora localizada na praça da Sé, 108, no mesmo prédio (o Palacete São Paulo) que abrigou a Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato.
A desvinculação do editor e do intelectual
Uma das coisas que Jézio considera "características do período atual no mundo da edição é que, da mesma forma que há a desvinculação contemporânea do intelectual e do político, há ainda uma mais estranha desvinculação do intelectual e do editor".
"O que havia antes?, ele pergunta. "Havia Ênio Silviera [1925-1996, à dir.], José Olympio [1902-1990], Monteiro Lobato [1882-1948]... Mas hoje nota-se não só uma separação, mas uma positiva crítica ao entrelaçamento dessas duas esferas. A preocupação com o mercado é vista como antitética em relação à vida, a uma trajetória intelectual, um panorama diametralmente oposto àquele que, por exemplo, foi abraçado por Monteiro Lobato: ele não conseguia ver uma coisa sem a outra, não se imaginava fazendo uma coisa sem a outra. E isso também acontece com vários editores de monta".
No Brasil o hiato é maior
Ao avaliar o que ocorre no exterior, Jézio identifica um movimento contrário: "grandes editores responsáveis, inclusive pela criação da Penguim, e outros tantos, como Goncourt [Edmond, à esq., 1822-1896, cuja fundação patrocina o Prêmio Goncourt], tinham a pretensão da difusão intelectual, da difusão de ideias, vendo o livro como um produto, sim, mas como um produto com peculiaridades. Mas, hoje, dependendo do foro em que se diga isso, dizem que é romantismo, algo completamente démodé. De fato, é démodé, mas nem sempre o passado está errado. E trata-se de algo anacrônico porque, contemporaneamente, pode-se ver que no exterior há algumas diferenças nesses casos".
"Na Alemanha, exemplifica, "quem está levando adiante o mercado, empunhando mesmo sua direção, inclusive empresarial, em empresas centrais, tem estofo acadêmico, o que não é tão claro assim fora da Alemanha, como nos Estados Unidos e em outros países. E no Brasil, como tudo é radical, temos a radicalização desse processo que mostra um hiato enorme entre uma coisa e outra".
Um erro empresarial
Vários editores que ele conhece, "gente competente na sua área, afirma positivamente, brande o lábaro do não intelectualismo, para que se encare o livro como um produto como outro qualquer. Concordo que se deva tratá-lo como um produto qualquer, mas, dependendo da esfera em que se trata desse produto, como a estritamente comercial, levando-se em consideração o ethos, o horizonte comercial, o livro é um produto realmente comercial. Mas não se reduz a isso, porque, quando não se percebe isso, há impactos que vão atingir a esfera comercial". Em sua avaliação, "é preciso considerar ambas as esferas, senão, primeiro o negócio se torna mais desinteressante; e, segundo, porque se trata de um erro, inclusive empresarial, comercial".
E, para ele, "editoras de primeira linha no Brasil padecem disso hoje porque encaram o livro sem nenhuma consideração sobre suas especificidades".
Como se aprendia a tocar piano
Ao comentar a passagem de Gumbrecht [Hans Ulrich, à dir., 1948] pelo Brasil, um estudioso muito preocupado com as resenhas e com a produção de conteúdos, "no último debate de que participou, ao lado de Silviano Santiago [1936], ele expressou uma tese muito ins[tigante: escrever, hoje, é mais ou menos como era aprender piano no século 19. Não se está muito preocupado com a leitura em si, mas com o fazer. No passado, mesmo se a jovem senhorita tocasse muito bem, o fazia por fazer, não para ser ouvida. Talvez, eventualmente, em pequenos grupos, para mostrar seu cabedal para os pretendentes. Mas aprender piano fazia parte da educação de boa parte da população feminina e masculina. No rol de conhecidos de Gumbrecht, no Vale do Silício, onde ele mora, pelo menos 30% estão escrevendo, romance ou não, sem a pretensão de que isso seja algo explosivo ou de serem editados pela Knopf [editora norte-americana], ou algo do gênero. Não sei se é verdade ou não, mas é ben trovato!".
A escrita para o consumo
No entanto, em sua opinião, "hoje a atividade de produção de conteúdo está cada vez mais desvinculada da atividade editorial propriamente dita, justamente porque a atividade editorial vive à margem da produção intelectual e obedece a critérios que muitas vezes não dão conta do que a produção intelectual tem a oferecer".
Entre a produção e o consumo, "a escrita está totalmente preocupada com o consumo, independentemente da produção, e vai se guiando, oscilando, conforme as variações que identifica na outra ponta do mercado".
As causas da esquizofrenia
No que diz respeito à trajetória da editora, destaca um ponto essencial desde o início, razão de suas especificidades: a Unesp, ao contrário de outras editoras universitárias triviais, se não vende, fecha as portas. Se tivéssemos, como houve recentemente, crises de editoras universitárias muito próximas de nossa realidade, afetadas pela greve das universidades estaduais, se não produzíssemos, se não vendêssemos durante 2 meses, fecharíamos, porque a universidade não nos fornece recursos para a sobrevivência inercial. Portanto é fundamental que nos aproximemos muito de uma atividade econômica, gerencial, empresarial normal, não acadêmica. E isso nos empurra para montar um catálogo que seja também rentável, também capaz de sustentar toda a nossa estrutura. Parece que estou dizendo uma obviedade, mas temos esse traço, o que faz de nós, da Editora Unesp, uma editora esquizofrênica".
Vivemos das livrarias, não de esquemas
De tais traços característicos não se pode nem se deve abrir mão. "Mas, em paralelo, é preciso ter um pé no mercado tradicional, na atividade tradicional do mercado que é a venda, e mais caracteristicamente do que outras editoras comerciais. Precisamos vender em livraria. Não temos estrutura para constituir lobbies ou esquemas robustos para vender para o governo".
"Portanto", resume, "paradoxalmente, o que acontece conosco? Somos aqueles que genuinamente vivemos do mercado. Há editoras, inclusive as mais rentáveis, que têm a possibilidade de vender maciçamente para o governo, portanto não precisam se preocupar com todos os trends de mercado, não precisam ficar atentas às livrarias, ao corpo de vendedores etc. Mas nós, que estamos ligados ao serviço público – porque a editora é uma fundação de direito privado, embora tenha um vínculo institucional com o fundador da Fundação, que é a Universidade Estadual Paulista –, somos regidos por licitação, temos restrições de diversas ordens que o mercado não tem, e com as quais o mercado não precisa se preocupar. Em contrapartida, somos mais comerciais que o mercado, uma vez que precisamos nos preocupar com a única fonte de renda que temos: as livrarias".
Na prática, a editora vive uma situação que ele classifica como mórbida: "muitas das empresas privadas têm metade, ou mais da metade, de sua renda diretamente vinculada ao governo, sem necessariamente se preocupar com o público em geral; e nós, vinculados a uma autarquia pública, temos de nos preocupar com livrarias – cada vez que uma nova livraria de uma rede aparece temos de conversar a respeito, ficar atentos, verificar quais livros estão pingando, quais explodiram mais no Rio de Janeiro, saíram mais no Rio Grande do Sul etc. Esse apanhado de mercado, clássico para qualquer mercado, quando falamos do livro como um produto comercial, precisamos considerar por uma questão de sobrevivência, como um vendedor de sabonete que tem de olhar para as estatísticas".
O monopsônio não é o mercado clássico
Outras editoras vivem muito bem no monopsônio, isto é, "num mercado estabelecido por um comprador e, por isso, só precisam saber como esse comprador se comporta e o que esse comprador vai privilegiar", nada mais distante do mercado clássico: "aquele que tem a ver com diversas lojas, levando em consideração o gosto, as tendências e as preferências do público em geral. E essa característica típica, ou tipificante, da Editora da Unesp se reflete em última instância em seu catálogo".
Nem mercenários, nem chapa-branca
No período em que está à frente da editora, ouviu diversas críticas, até de outras editoras universitárias, "dizento que éramos mercenários, que vendíamos coisas tipicamente feitas para o mercado". E mais: "diversos componentes ilustres do mercado nos criticaram dizendo que estávamos roubando uma parcela de mercado que era caracteristicamente própria das editoras privadas. Até gente da CBL durante um período nos disse isso com todas as letras".
Mas olhar para o mercado é algo "que não podemos nos furtar a fazer; precisamos disso para sobreviver. Como somos um caso mórbido, somos vistos como elementos não pertencentes à livre iniciativa, nos veem como uma editora chapa-branca. A acusação usual é: 'Vocês pegam dinheiro público, de impostos que pagamos, e esses impostos são direcionados para nos fazer concorrência'. A rigor, isso não é verdade porque a Universidade não tem participação tão significativa assim para nos sustentar. Quem nos sustenta é, fundamentalmente, a vendagem comercial clássica. Nesse sentido somos indistinguíveis daquelas poucas editoras, pelo menos as médias, que vendem e se preocupam com o mercado livreiro", que no Brasil é tipicamente composto pelas megastores, as lojas, "atendido pelas médias e por algumas CTPs como nós".
E tais restrições vêm desde a constituição da editora, em 1987 e, em especial, quando a Fundação Editora da Unesp foi criada em 1993-94.
Nesse periodo, "o que fizemos foi constituir um catálogo prestigioso, com títulos de boa qualidade, que preenchessem lacunas enoooormes no mercado editorial brasileiro, porque, no que respeita aos clássicos, por exemplo, é uma coisa absolutamente impressionante o que ainda há por fazer no país, razão mais do que de sobra para que ninguém se preocupe com o que fazemos, porque há espaço pra todo mundo, seja de qualidade, de constituição de catálogo, seja de intervenção de nichos".
A crítica como momento ilustre
Das iniciativas essenciais ele destaca a publicação de ensaios que não se circunscrevam ao debate acadêmico.
"O horror econômico é um marco nesse caso, porque foi criticado, inclusive, por Roberto Campos", um dos momentos que ele considera dos mais ilustres da editora. "Receber uma crítica direta de Roberto Campos [1917-2001] é algo de que devemos nos orgulhar profundamente, pois ele disse que muito o admirava que uma editora acadêmica publicasse esse livro, porque era de uma não especialista".
"A Viviane Forrester [1925-2013, à esq.] não era, nem se pretendia, uma especialista, uma acadêmica; era uma especialista em Van Gogh, que simplesmente fez um libelo contra o escândalo do desemprego na Europa no fim do século 20 e começo do 21, porque achava que era inadmissível que houvesse um panorama como aquele que apontava no livro. Era um libelo moral, não econômico, e por isso suscitou todas as manifestações que houve na França na década de 1990. Publicamos esse livro justamente porque achamos que um dos objetivos de uma editora universitária não é apenas suprir a academia, mas também intervir no debate, independentemente de se é ou não um debate acadêmico".
Universitária, mas não exclusivamente acadêmica
O projeto editorial da Unesp tem uma tarefa que assumimos: estar presente no debate para municiar, seja um lado, seja o outro, fornecendo instrumentos que façam o debate ser mais elaborado, mais elucidativo, mais esclarecedor. A mesma coisa que ocorreu, muito depois, com o Vozes do Bolsa Família, de Valquíria Leão, publicado com o mesmo objetivo: esclarecer uma questão que é extremamente polêmica, de um debate que hoje em dia produz mais calor que luz, um debate político de paixões, envolvendo desde preconceitos até convicções, ódios e amores, e que não são nada esclarecedores. Gostaríamos de, ao menos, fornecer aos contendores os instrumentos de esclarecimento, e eles que façam o que quiserem com isso. Do mesmo modo, em relação à situação de segurança do Brasil ou temas polêmicos sobre saúde, como Parto normal ou cesárea. Todos esses títulos mostram uma face de editora universitária que não se pretende exclusivamente acadêmica".
Procuramos fazer que os livros sejam vendáveis
Por outro lado, a editora também se preocupa em publicar materiais tipicamente acadêmicos. Entre os clássicos, por exemplo, um dos livros do Locke [John, 1632-1704], Draft A, que não é nem das suas obras mais importantes, mas que é realmente para filósofos, é importante para o acadêmico que deseja se aprofundar no empirismo inglês. Esse livro tem a intenção de atingir um grande público? Não, não tem. Mas, quer num caso, quer no outro, seja fazendo uma edição voltada para um público não acadêmico, seja para um público acadêmico, e mesmo quando fazemos uma publicação para o público acadêmico, nunca pretendemos que esse livro não venda. Por uma ou outra razão sempre procuramos fazer que os livros sejam vendáveis".
Ao fazer um balanço, o resultado é uma produção que saltou de 10 títulos por ano, em 1987, para 200 e poucos hoje, "o que denota o ímpeto assumido desde o início. Todos esses ideais – de intervenção com discussão mais elaborada entre o público não acadêmico, de um lado, e, de outro, que municie o debate acadêmico –, regeram a escolha editorial, o avanço editorial durante esse período todo. E é importante lembrar sempre, tanto numa seara quanto em outra, pela estrutura institucional que temos, a necessidade da sustentabilidade econômico-financeira".
Centros de publicação com recursos próprios
E reiteria que "os objetivos editorias e institucionais não estão desvinculados dos objetivos financeiros em termos institucionais, empresariais que precisamos ter, porque a universidade brasileira hoje não comporta grandes editoras. Comporta, sim, centros de publicação. E no período de crise acadêmica que vivemos não se pode esperar que a universidade pública brasileira coloque sua atividade editorial como a principal. Portanto, se a editora não tiver recursos próprios, se não tiver o mínimo de independência administrativa, financeira, gerencial, ficará paralisada, indo de encontro aos seus objetivos mais centrais".
(Na Parte 2, na próxima postagem, outros aspectos essenciais, como:
As traduções como meio de sobrevivência econômico-financeira; Um olhar oblíquo para editoras de latitudes baixas; Não é de um dia para o outro que se amarudece para a megalomania; O caminho para os clássicos; A qualificação camaleônica abre novas perspectivas para o mercado.)
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Jézio Gutierre é graduado em Economia pela USP (1977), mestre em Filosofia pela Universidade de Cambridge (1994), mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela Unicamp (1987) e doutor em Filosofia pela Unicamp (2000). Professor assistente doutor na Unesp, desde 2001 é editor-executivo na Fundação Editora da Unesp. Traduziu A questão de Jean-Jacques Rousseau, Os olhos do Império: escritos de viagem e transculturação (ambos em 1999); Popper: o historicismo e sua miséria (2000); Como escolher amantes e outros escritos, de Benjamin Franklin (2006, à dir.); e Escritos sobre ciência e religião, de Thomas Henry Huxley (2009).