O anúncio da casa Padovan, até o início da 2ª Guerra chamada Sapataria Bella Venezia e sinônimo de elegância, dizia: “Peça calçados pelo fone 3-6-5 e a Casa Padovan mandará levar em sua casa”. Além das camisas Tannhaüser, das gravatas e lenços Duplex e dos chapéus Prada, a casa vendia os calçados Scatamacchia.
Outro ponto comercial que atendia os bem-vestidos, como descreve Carlos Domingos em Oportunidaades disfarçadas (Sextante, 2009), atraía seus compradores destacando as marcas mais desejadas:
“Vamos entrando, distinta freguesia. As lojas Clipper já receberam os novíssimos calçados para senhoras... o Camelo de cromo alemão, o Scatamacchia de bico fino...”.
Tão desejados eram esses calçados, que Mario Souto Maior, em Folclore etc. e tal (Comunicação, 1995) registra: “era hábito da estudantada participar em peso do footing da rua Nova, no Recife, nas tardes dos sábados. E sempre lá estávamos todos nós, calçando sapatos de verniz preto da Scatamacchia, roupa de casemira marrom e glostora nos cabelos...”.
O surto industrial do começo do século XX
Sonho de consumo dos endinheirados, na fábrica Scatamacchia, resultado do surto industrial da década de 1930 em São Paulo, conduzido em boa parte por integrantes da colônia italiana, havia grande preocupação com a qualidade, não apenas do produto em si, mas também com o bom andamento do negócio. Tanto que, quando a Escola Superior de Administração de Negócios (Esan) foi criada, em 1945, no bairro da Liberdade (no centro da capital paulista), entre os primeiros 41 administradores formados estava José Carlos Salinas, cujos estudos foram pagos pela Calçados Scatamacchia.
Habilidade manual, disciplina, criatividade
Um dos fundadores desse negócio foi o avô de Claudia Scatamacchia, filha de uma professora e de um arquiteto e neta de italianos: além do sapateiro, como diz, o outro era escultor, trabalhava com ferro batido, e as avós, costureiras, que amavam artesanato, todas atividades que exigem habilidade manual, disciplina, criatividade, que uniram seus pais e chegaram a ela em forma de paixão e ofício: o desenho.
Nascida em São Paulo, em 1946, formada em Comunicação Visual pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) [à esq.] e premiada várias vezes no Brasil e no exterior, Claudia ilustrou clássicos e autores dos mais importantes, como Hans Christian Andersen, Virgilio, Goethe, Lewis Carroll, Perrault, Irmãos Grimm, Fernando Pessoa e Érico Veríssimo, somando mais de 200 livros, em um currículo cujo item número 1 foi um desenho publicado numa revista da comunidade síria quando tinha 12 anos de idade.
Pareço a Nair Bello
Ao começar a entrevista, que ela diz ser a primeira de e sobre sua vida, solta um Va bene, cosi. E continua: “Gosto muito de italiano. Gosto de línguas, é claro, mas, se a gente não fala, vai perdendo. Quando a mamma estava aí, falava com ela, com meus avós, ia treinando e ouvindo. Com o tempo, engraçado, voltei a falar. E tá bacana, porque aos poucos estão me chegando outras palavras, uma puxa outra, vou rememorando. Mas o resultado é uma coisa tenebrosa, meu português ficou muito italianado, pareço uma conchetta brocoli, é feio pra chuchu, falo cantado e pareço a Nair Bello [à esq.], mas não ligo”.
Mais do que as expressões em italiano que salpicam a conversa, "gata" e "gatinha" são outra recorrência no tratamento com o interlocutor, soando como um afago.
Desde a infância, motivada pela família que “a ensinou a amar a natureza, a música, a dança e o desenho”, como explica em uma das muitas biografias nos livros que ilustrou, Claudia recebeu boa educação, tanto em casa quanto na escola. No Colégio Sacre Coeur [fundado em 1938 e uma das mais tradicionais escolas da elite paulistana; acima em foto de Josef Prado, 2007] teve excelentes professores, sobretudo os de literatura, cujas aulas considerava maravilhosas, época em que leu os clássicos franceses, no original, destaca, entre os quais cita Corneille e Racine, e reconhece o quanto isso foi importante para ampliar seus horizontes e lhe dar uma base de conhecimentos sólida, embora não tenha podido concluir os estudos ali. A falência da empresa e a perda do patrimônio, que para ela se traduzia na paúra de perder a bicicleta e o piano, que tocava desde menina, levaram-na ao mercado de trabalho muito cedo.
Desempregada e com uma graninha, vamos para a Europa
A primeira oportunidade surgiu quando a Editora Abril contratava estagiários. Ela se inscreveu, foi aprovada e fez um périplo por todos os departamentos da editora, onde aprendeu tudo sobre produção.
Dois anos depois, a editora propôs que assumisse o lugar e as funções do diretor de arte, do qual ela era assistente. “Como ele, com família e um filho deficiente, seria demitido”, recusei a ‘oferta’”, recorda. E admite que ser dispensada foi ótimo. Primeiro, porque, “sabe gatinha, o assistente de arte não desenhava coisa alguma, ali ninguém desenhava nada. Aliás, revistas ilustradas na época eram pouquíssimas; esse campo só passou a existir de fato quando começaram revistas como Playboy, Capricho, Saúde”.
Segundo, porque, com o dinheiro da indenização, propôs ao namorado, Micha, irem à Europa, onde poderiam alugar um carrinho e percorrer o continente. “Fomos em abril, em 1968. Que loucura!” Ele era um “estudante durango da FAU e eu estava desempregada e tinha aquela graninha que podia gastar”.
Micha nasceu na então Tchecoslováquia e dois de seus irmãos, na Itália. Seus pais eram russos, mas deixaram “o país durante aquele rolo na URSS. Me lembro dos avôs dele, que não falavam português; a avó me deu uma cartilha de russo, para eu ir aprendendo” [Risos].
O contato que teve com a cultura eslava, nesse período, “quando se dizia que na Rússia comiam crianças e outras bobeiras, foi maravilhoso. Era um outro mundo, né, gatinha?, e culturalmente, fabulooooso. O que tinha de arte gráfica na Tchecoslováquia, na Polônia, era outra linguagem, muito bem desenvolvida, muito séria e desconhecida, porque a Guerra Fria filtrou tudo; aqui nada chegava; e isso foi um processo enriquecedor do tamanho de um bonde, em todos os aspectos”.
Em Veneza quando a URSS invade a Tchecoslováquia
“Nessa época foi tudo muito bonito, até porque, olha só que interessante, gata, olha o contraste, em termos históricos: por um lado, a tradição do imigrante italiano que veio, construiu várias coisas, ganhou muito dinheiro e depois perdeu tudo, resultado da entrada do capital americano no país; e, por outro, os foragidos da guerra e de vários países. Foi um processo rico, agradeço mesmo. Acho que a vida foi muito generosa comigo, porque era outra vivência a deles. A avó e a bisavó do Micha tinham feito parte da corte do czar, uma história maluquérrima. A avó dele era casada, em segundas núpcias, com um aristocrata que falava francês – o idioma da elite – e era educadíssimo, finíssimo, elegantíssimo. Imagina minha cabeça. Eu dizia: ‘Minha nossa senhora!’. Foi muito legal. E quando olho hoje, tenho até vergonha de dizer que em 68 eu estava na França. Estávamos em Veneza, olha a loucura, gatinha, quando a Rússia invadiu a Tchecoslováquia [acima, foto de Ladislav Bielik, com Emil Gallo em primeiro plano] onde não podíamos entrar porque o passaporte do Micha era amarelo, ou seja, se entrasse, não saía mais.”
"O hábito do chapéu"
Fazendo um parêntese histórico, em relação à chegada do capital estrangeiro no Brasil, citada por Claudia, em 19/2/1975 a edição 335 da revista Veja fez uma reportagem especial, "A presença e o poder dos italianos nas indústrias, na política, nos hábitos – enfim na História do Brasil", em homenagem aos 100 da colonização. Sob o título "O hábito do chapéu" menciona que "foi na década de 50 que se revelou a fragilidade do empresariado nacional diante dos grupos internacionais" e cita casos de fechamento de várias empresas constituídas por italianos, como a Ramenzoni (fábrica de chapéus); a Romi (criadora do Romi-Isetta) e a indústria Scatamacchia "vendida pelos seus herdeiros em 1964, quando os problemas administrativos derrotaram os descendentes do ex-sapateiro Donato Scatamaccahia".
De voltas às expectativas
Ao voltar, Micha continuou na FAU e ela foi trabalhar em dois escritórios: primeiro, no do artista português radicado no Brasil Fernando Lemos [à esq.] e, em seguida, no de Emilie Chamie [abaixo, à dir.], duas experiências muito diferentes. "Com o Fernando, a expectativa era do tamanho de um bonde, mas caí do cavalo, não foi nada do que eu imaginava. Já com a Chamie, esposa do Mario Chamie [abaixo, à esq.], o qual época tinha um cargo importante na Olivetti e era um intelectual reconhecido, super-respeitado, pertencia a um grupo intelectual demais, não deu certo, e aí decidi trabalhar por conta própria.”
É esse momento que Claudia identifica como o início propriamente dito de sua carreira. Primeiro na Melhoramentos, que lhe dava livros didáticos e de matemática para ilustrar. "Desenhava o retângulo, o quadrado, aquelas coisinhas e sobrevivia com aquilo, numa boa”, tendo perdido a conta de quantas ilustrações fez para livros variados, enquanto nas horas livres se dedicava à pintura, outra paixão desde a infância. Logo depois, ilustrou O urso com música na barriga, de Érico Veríssimo [abaixo em seu escritório], e outros livros foram vindo, devagar.
O fascínio do jornalismo
Apresentar-se como ilustradora freelancer foi uma decisão importante, que funcionou bem. Para a revista Capricho, então criada há pouco, fez muita coisa e foi onde pôde exercitar seu humor, que ela adora e define como “gostoso”. Com o crescimento desse segmento editorial, encontrou novas oportunidades. Para a Visão, fez todos os editoriais. Em seguida apareceram as revistas Saúde, a publicação de bordo da extinta Vasp (Viação Aérea São Paulo), as quais lhe deram muuuuito trabalho, além da Exame. Embora tenha sido chamada pela Veja, para eles fez poucos desenhos. “Essa experiência toda foi muito importante, porque a ilustração jornalística é muito instigante. Mesmo sendo um trabalho solitário, você participa do dia a dia com uma intensidade incrível. Eles me ligavam e diziam: ‘Claudia, preciso de uma coisa assim e assado porque estourou tal problema não sei onde’ e eu fazia”.
Desse período uma das lembranças de destaque é uma ilustração de Bertolt Brecht [à esq.], “uma das primeiras que fiz para a editoria de Cultura – porque se passava de uma para outra tranquilamente, com a maior facilidade. Aí pensei: ‘meu Deus do céu, Brecht’. Não me lembro se era A ópera dos vinténs, mas saí correndo, fiz muita pesquisa e acabei retratando-o como se fosse um títere. Ficou lindo”, o que hoje ela admite, porque acredita que na época não sabia avaliar bem seu trabalho. Mas lembra-se que o desenho era sofisticado e impressionou o diretor da revista, o jornalista Luis Carta, “um homem muito culto”, que, além de lhe dar um valor extra pela ilustração, lhe abriu espaço em todas as editorias. Para a Nacional, fez muitas caricaturas. Para a de Economia, onde fizeram uma série sobre inflação, aquela galopante que alcançava três dígitos, fez um conjunto de ilustrações bem-humoradas. Esportes, Internacional... “Um dia era Napoleão, no outro Anuar Sadat.” E se lembra do dia em que o Luis Carta a convidou para ilustrar a A divina comédia. [Gargalhadas] “E eu disse pra ele: ‘Você enlouqueceu?’”.
Se, por um lado, trabalhava “feito uma maluca, sábados, domingos, feriados”, por outro, “era uma área em que se aprende muito justamente por proporcionar a oportunidade de se fazer de tudo. Foi uma época maravilhosa, eu adorava o jornalismo, até que o computador chegou e ninguém mais queria saber de desenho em papel.
Tenho de sentir na ponta dos dedos
Ela se lembra da última ilustração que fez. "Foi para a revista Superinteressante, uma matéria sobre ecologia. Fiz um desenho enorme, com araras e outros bichos, cheio de pititi-pototó. Quando o entreguei, o editor me disse: 'Você está louca? Senta aí'". E o enorme desenho sumiu no corredor. Depois de escaneá-lo, lhe devolveram o original e nunca mais a chamaram. "'Se quiser, vai ter de virar digital'. Mas não me adaptei, não consegui, gatinha. Trabalho na relação mão-coração-olhinho, nessa intimidade, e transpor essa relação para mão-tela, não conseguia. Tenho de sentir na ponta do dedo, senão, não funciona. Tentei, porque fiquei sem trabalho do dia para a noite, porque ninguém mais queria, né, gatinha? Aí respirei fundo, fiz não sei quantos cursos, gastei um dinheirão, tentei, mas não consegui, bella”.
A nobreza da Bienal
Por outras dessas coincidências, Claudia teve a “oportunidade maravilhosa de ser convidada para fazer o cartaz da Bienal, a primeira exposição de desenho industrial, cujo tema era ‘Tradição e Ruptura’, e fiz aquela bandeira forte” e toda a comunicação visual, incluindo folhetos, camisetas etc.
“Esse cartaz tem uma história bonita, faz parte das experiências bacanas, mas duras de roer. O conselho da Bienal era composto pelo José Mindlin, pelo Luis Villares, gente que era uma nobreza. E sempre fui, sou até hoje, muito simples. Mas quem me convidou foi o Roberto Muylaert, que na época era o presidente e tinha sido editor-chefe da Visão, e isso fez a liga. O rapaz que estava fazendo o trabalho não deu certo e ele me ligou: ‘Claudia, vem fazer’. E era o auge da Bienal, quando todo mundo queria fazer aqueles cartazes, e eu era uma ilustre desconhecida, gata. Isso não me importava muito, mas eu pensava: ‘O que é que eu vou fazer pra esses caras?’ Foi muito interessante. A minha responsabilidade, a sensação de que estava tendo uma oportunidade monumental, de uma experiência muito nobre, que eu ia amar, com um monte de gente, gatinha, e tinha tudo ao contrário, porque ninguém me conhecia. Tanto que houve um chique-chique-meu nego lá dentro. Era um tal de ‘Quem é essa mulher?’, ‘Saiu de onde?’, de um lado, e, de outro, a confiança que o Muylaert depositou em mim para apagar o fogo. Foi muito legal. Aí eu pensei, pensei, ‘Tenho de usar uma linguagem abstrata, não pode ser figurativa, não posso usar carinha de gente’. Tradição e Ruptura era o tema, e acabou saindo essa bandeira matusquela, amore, depois de não sei quantos dias, ou noites, ou madrugadas, pensando e testando.
"Castimbau", e a gente teve de fazer um acordo
Parte das tentativas que fez para criar o cartaz, Claudia extraiu da experiência do período, curto, em que trabalhou com moda. “Quando trabalhava com moda, eu tinha de fazer as cores do próximo outono e, pra isso, tinha de testar as cores”. Cores essas que vinham da França, mas que ela precisava reproduzir aqui. “Para testar eu não podia usar as tintas caríssimas que eles usavam, mas precisava fazer as cartelas, que eram enormes. Havia uma técnica especial, que tive de correr atrás para aprender, de pintar o papel com ecoline, desculpe, anilina, que não é barata, não; é cara, porque as de boa qualidade são estrangeiras, mas, em compensação, você põe um grãozinho e ela faz ‘splash’” [e mostra com as mãos sobre a mesa de trabalho a cor explodindo, escorrendo, ocupando toda a área].
“Com isso, aprendi a usar bem todas as cores e, na hora de fazer o cartaz dos caras, pensei: ‘Bom, vou testar, testar, até bater o olho e saber fazer num gesto só essa bandeira’. Peguei anilina e sobra de jornal e fiquei testando essa coisa manual, que na época chamavam gestual. E deu certo, gata. Mas olhe que engraçado, gata: fiz vermelho e verde, o fundo do cartaz era vermelho, e a bandeira, o gesto, aquela coisa bastante agressiva, era verde, por causa da vibração, forte pra caramba, vermelho atrás e verde em cima. E aí, quando foi para a aprovação do Conselho da Bienal, bem... Vermelho os caras já tremiam nas bases. ‘Mas, como?’ ‘O cartaz da Bienal vermelho?’ Aí eu disse: ‘Castimbau, esqueci que ainda existia na cabeça das pessoas aquela ideia de que vermelho era coisa de comunista. [Gargalhadas]
E entre mais risadas ela cotinua: "Foi tão engraçado, porque a gente teve de fazer um acordo. As cores da Bienal eram azul e verde, mas o vermelho e o verde são mais vibrantes. ‘Faço como os senhores quiserem.’ Então metade foi feita em vermelho e verde e a outra metade, em azul e verde. E assim aprovaram. O vermelho e o verde eram mais bonitos. Alguns foram impressos em vermelho, mas a maior parte ficou com as cores tradicionais’."
Sobre essa exposição, José Mindlin [em sua biblioteca, à esq.] afirmou que esse era um projeto em que ele, Villares e Dílson Funaro vinham pensando há algum tempo "para incentivar a formação de um design reconhecido universalmente como design brasileiro, uma marca brasileira, como ocorre com os países europeus, ou com o Japão”.
No ano seguinte, 1985, para a 18ª Bienal novo convite para fazer toda a comunicação visual da exposição e outra experiência que ela diz ter adorado. Dessa vez, o cartaz, sem adjetivos, não abusou do vermelho e, com o passar do tempo, tornou-se tema de alguns estudos acadêmicos. Um deles, de Jarbas Elias Abdala, “Design & Artes Visuais em diálogo nos cartazes das Bienais de São Paulo”, procurou “examinar as possíveis conexões com a visão mais eclética e híbrida do design e das artes nos anos 1980, um estudo de casos que busca explicitar a importância do cartaz, não somente como suporte do fazer design, mas, também de relevância histórica ao servir como espelho da cultura, aqui, em especial, das artes e da sociedade de uma época".
Outro parêntese
Quando Claudia menciona que Roberto Muylaert a chamou e confiou nela para a Bienal, o que não comenta é o fato de essa parceria ter antecedentes que iam além da revista em que ambos trabalharam e remontam ao fim dos anos 1970 e à logomarca do CNPq.
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