Gilberto Freyre, o homenageado da Flip em 2010
Foi às vésperas da 8a. edição da Festa Literária de Paraty (Flip) que Gustavo falou ao Globo Ciência, comentando alguns aspectos da obra de Gilberto Freyre, como a introdução do conceito de miscigenação no processo de formação da sociedade brasileira, a introdução da figura do mulato, o erotismo presente em várias passagens, onde descreveu o grau de oferecimento das índias aos primeiros portugueses e a proporção do corpo dos negros, provocando reações extremadas na época do lançamento de Casa-grande & senzala, quando exemplares do livro foram queimados e outros escritores a tacharam de obscena.
O essencial é desenvolver o gosto pela leitura
"Ser um autor homenageado é ótimo para tornar o autor mais conhecido e muita gente não sabia quem era Gilberto Freyre. Já no meio acadêmico, não sei se houve impacto, porque as discussões não foram muito inovadoras, mas as mesmas: ‘Ele realmente é adepto do mito da democracia racial?’. Mas acho que a Flip tem de se aperfeiçoar e ser um evento dedicado à formação de leitores, o que deve acontecer com toda feira, toda Bienal, seja em São Paulo, no Rio ou em Brasília. No Brasil o evento que melhor faz isso é a Jornada de Passo Fundo [acima]. O trabalho da Tania Rösing é uma coisa incrível: ela leva escolas e mais escolas para assistir e para conversar com os autores. Recentemente conversei com o Sergio Vaz, que participou em 2013, e o retorno dos autores é sempre de estupefação. Acredito que a Flip esteja caminhando nesse veio da formação de leitores, tem feito coisas com a comunidade lá de Paraty, a Flipinha. Para mim, qualquer que seja o evento, relacionado ao meio literário, tem de se preocupar em fazer um balanço no fim e ver quantas pessoas tomaram gosto pela leitura”.
200 notas de rodapé e o Prêmio Jabuti
Editado em 2010, em De menino a homem, de mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos há textos de Gilberto Freyre para pessoas de quem ele gostava, entre os quais José Lins do Rego [1901-1957]. Esse, em particular, emociona Gustavo, “porque fala muito da amizade dos dois. Há fotos em que você os vê e percebe que eram muito grudados, tinham muita afinidade. E isso mexe comigo. E esse livro foi um parto porque, quando o Jefferson [Alves] entrou em contato comigo para o editarmos, disse que precisava que eu lhe desse um tratamento diferenciado. Como era um relato autobiográfico, e é uma continuação de Tempo morto e outros tempos, pensei que seria bacana fazer notas de rodapé sobre as pessoas e as situações mencionadas. Escrevi mais de 200 notas e foi um momento bacana, marcante, porque nunca imaginei, na graduação, que em algum momento ia escrever notas para sua autobiografia. E houve uma pesquisa grande para escrever notas que não fossem acadêmicas e tratassem da pessoa mencionada no livro, muitas vezes da relação que aquela pessoa teve com ele. Esse foi um dos momentos mais agradáveis dessa jornada de trabalho em editora. E ainda foi premiado com o Jabuti em 2011. Fiquei feliz, foi muito legal”.
O que também dá gosto a Gustavo e ele acha muito sedutor é a troca de cartas entre autores, porque “o interessante de editar correspondência é poder juntar histórias, materiais, uma foto a tal carta ou uma matéria de jornal a que a carta faz referência”, como em Câmara Cascudo & Mário de Andrade, numa linha em que a editora proximamente vai publicar mais títulos.
A dívida dos acadêmicos com o público
Entre suas leituras, além do jornal diário, ele lê “muito sobre história, Brasil Colônia” e gosta muito de [Robert] Darnton [abaixo, à dir.], de [Carlo] Ginzburg e de teoria da história. “Geralmente, as pessoas não gostam de leituras relacionadas à teoria da história, mas eu gosto, porque tenho mais afeição pela chamada história cultural do que pela história social, que procura ver as mudanças através das questões chamadas sociais. Por exemplo, um trabalho sobre ‘A escravidão em Patos de Minas, entre 1858 e 1874: um levantamento econômico ou demográfico’ não me chama a atenção. Gosto mais da parte cultural, logicamente vendo também as questões políticas envolvidas na cultura, mas meu interesse é a história dos movimentos culturais relacionados aos fenômenos políticos”.
Quanto à literatura “passei a ler com mais afinco depois que comecei a trabalhar com os livros da Cecília e do Bandeira. Antes não lia muita literatura, hoje leio os escritores brasileiros ontemporâneos.
Dos desejos de trabalho, ele admite que “gostaria de editar Guimarães Rosa [1908-1967]. Embora tenha um idioma ‘dele’, gostaria de pensar como apresentá-lo de uma forma que tivesse relação tanto com o seu tempo quanto com uma roupagem nova. O Grande sertão: veredas e o Primeiras estórias são os dois livros em que gostaria de mexer.
O que é exatamente seu dia a dia
Quando o original chega à minha mão converso com o coordenador editorial e procuro orientá-lo. Como lidamos com autores já publicados, primeiro cotejamos a primeira prova. Mas antes, quando o livro acaba de ser digitado, já começo a pensar na capa, no formato, se vai ter algo além do texto, um caderno de fotos, se vão ser distribuídas ao longo do livro. No caso de alguns, faço a pesquisa iconográfica. Temos o Emerson [Charles] que é especialista nisso. Depois vejo a segunda, em seguida a plotter, faço uma conferência com a última prova. E o pessoal já sabe. Quando o livro chega da gráfica, o pessoal da produção me liga e avisa, porque sabem que fico ansioso. E também lido um pouco com os autores, com alguns colaboradores, e ultimamente tenho recebido ilustradores, por conta dos livros da Cecília e do Bandeira, ambos autores de vários infantis".
De sua preferência, entre aqueles com quem já conversou, Elen Pestilli [acima, à dir.], cujo trabalho tem uma delicadeza ímpar. “E uma coisa que me impressionou, quando comecei a lidar mais com a ilustração, é a qualidade fantástica da ilustração brasileira. Não tinha noção. Por exemplo, há um ilustrador, o Luciano Tasso [abaixo], que foi para Bolonha há dois ou três anos e trouxe o catálogo dos ilustradores no mundo. Depois de olhá-lo comentei com ele que a ilustração brasileira me parecia superior a boa parte da de outros países. E uma das coisas que me chamaram a atenção é que alguns ilustradores europeus têm o costume de colocar um coelho no desenho. E o Luciano me disse que na Europa se você coloca um coelho numa ilustração está tudo certo. A ilustração brasileira me parece muito mais criativa no sentido de não ser literal.”
A dívida dos acadêmicos com o público
Sobre o mercado em sua área específica, a história, ele acha que, “de maneira geral, o que vem sendo publicado atende à demanda, tem bons livros na área. “Há editoras, como a Martins Fontes, com um trabalho fantástico em história”. Mas sente falta de livros de história “escritos por professores universitários com uma linguagem um pouco mais adequada ao público em geral”. E quando diz isso “é lógico que me refiro a essa enxurrada de livros de autores que acabam simplificando demais a história na tentativa de atender a uma demanda dos editores por livros que sejam vendáveis ao máximo. Acho que, quando os historiadores reclamam que autores como Eduardo Bueno [abaixo], Laurentino Gomes deturpam a história, eles de fato deturpam um bocado, mas o desafio está com os professores de história em escrever sobre história, em paralelo a seus livros dedicados à universidade, que sejam adequados a um público amplo. Isso é uma coisa que eu gostaria de ver. E acho que tem campo pra isso.”
Quanto aos didáticos, ele acredita que estamos bem servidos, os livros são bem-feitos, bem pensados tanto para o aluno quanto para o professor, e consideram que o aluno é um ser pensante, não apenas um absorvente de conhecimento.
A vida acadêmica e o trabalho editorial
Entre seus planos, pretende reescrever o mestrado para publicar, “se a Global tiver interesse, porque preciso mexer no texto e, por conta do dia a dia, não tenho me dedicado a isso, mas gostaria de deixá-la registrada de forma mais ampla, uma vez que a dissertação de mestrado está digitalizada na Unicamp para quem quiser baixar, mas na hora em que se publica é quando as pessoas começam a discuti-la mais seriamente, com mais afinco, prestam mais atenção no que você escreve”.
Entre o trabalho na universidade e o no mercado ele vê diferenças essenciais. “Na universidade você tem mais tempo para refletir sobre o que está fazendo, mas no dia a dia de uma editora é preciso tomar decisões imediatas. Fazer um trabalho, de revisão e preparação de uma forma que atenda ao cronograma, que às vezes é algo que aflige, mas, por outro lado, trabalhar com livro dá uma satisfação mais imediata. Quando a gente está escrevendo o mestrado fica dois, três anos pesquisando e escrevendo, depois tem o resultado final, que também satisfaz. Na editora é diferente. No dia a dia você está sempre tendo resultados, vê o livro pronto, todo começo de mês sai aquele número de obras em que você trabalhou. Nunca imaginei que fosse trabalhar na área editorial. Eu gostaria de poder conjugar as duas atividades: a editorial e a de pesquisa acadêmica que se faz no ambiente universitário. Para mim, elas se completam e beneficiam uma a outra.”
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Gustavo Henrique Tuna é graduado em História pela Unicamp (1998), mestre em História Cultural pela Unicamp (2003) e doutor em História Social pela USP (2009). Atualmente é editor-assistente na Global Editora.