“No curso primário, continuei sofrendo o impacto da luta com as palavras, e afinal veio a descoberta de que os textos pediam, de fato, decifração. Nunca vou esquecer a aula em que um obscuro crepúsculo, descrito com solenidade por José de Alencar, ganhava clareza e sentido a partir da explicação dada pela professora. Creio ter vislumbrado ali, pela primeira vez, os caprichos da linguagem, o poder transfigurador das metáforas e 'a poesia imensa' que, segundo o autor de O Guarani, existia nas coisas, dependendo de como fossem olhadas.” Panorama editorial
Uma vocação inventada
Montes Claros, norte de Minas Gerais. O jovem de 17 anos decide inventar uma vocação – o jornalismo –, nada além de uma estratégia para obter anuência e recursos de seus pais e seguir rumo a Belo Horizonte. Como muitos de sua geração, tão inquietos quanto ele, não alimentava ilusões em relação ao curso, o único possível numa época parca em opções, mas muito efervescente. Na Universidade Federal de Minas Gerais, “fiz um curso excelente e tive contato com pessoas legais, uma moçada que gostava muito de cultura”, o que o levou a também querer fazer teatro. Concluído o curso, o que ele queria da vida? “Esquecer aquele diploma e ir para o Rio ou vir para São Paulo fazer cinema.”
Não curtia o hardnews
Como “tudo que acontece nessa fase da vida é muito importante e decisivo”, afirma hoje, um emprego na TV Manchete, no Rio, lhe chegou às mãos: “Eu gostava de cinema e, por acaso, houve essa coincidência da TV me capturando pela vontade de lidar com a linguagem audiovisual, meu grande objetivo naquele momento”. No entanto, a experiência com a notícia do dia a dia, o chamado hardnews, “era pouco estimulante, muito ingrata, eu não curtia”, situação agravada pela eterna crise da empresa que regularmente promovia demissões em massa. Ficou naquele emprego apenas um ano e meio.
Do Rio para São Paulo: a primeira lição na tevê
Movido pela expectativa de trabalhar com teledramaturgia, aos 23 anos mudou-se para São Paulo e, valendo-se de alguns contatos, bateu na porta da TV Cultura [à esq.], que, à época, apresentava um programa na linha do “Caso Especial”, da Globo. Mesmo sendo jornalista, acreditou que poderia aos pocuos - numa emissora grande, com estúdios próprios, diferentemente da Manchete, cuja sucursal era uma sala mirrada - migrar para o departamento que o atraía. Mas “o tipo de trabalho também não era bom. Eu era editor, ia para a ilha de edição e, das 7 horas que ficava ali, 6 passava esperando a matéria chegar da rua e, quando ela chegava, tinha 1 hora para decifrá-la, organizá-la e colocá-la no ar. E a primeira lição que me deram foi: ‘A boa matéria não é a matéria caprichada, mas a que vai pro ar’. Queriam que eu ficasse 6 horas parado, sem pensar em nada, lendo jornal, para depois, enlouquecidamente, editar uma matéria por dia, que seria boa se fosse ao ar, não se tivesse recursos audiovisuais que eu queria, lá com a minha cabeça cinematográfica, desenvolver”.
Cinema, filosofia e letras
Angustiado com o emburrecimento em redação, “de que muitos colegas falam e sempre localizei naquele cotidiano e nos plantões nos fins de semana, em que você fica e, quando vê, passaram-se 6 meses e não conseguiu ler um livro que preste”, deixou a emissora em 1991 e foi tentar o mestrado em cinema na Escola de Comunicações e Artes (ECA), com o professor Ismail Xavier [à esq.], “muito disputado, com uma fila de possíveis orientandos para dez anos”. Com essa porta fechada, prestou vestibular e entrou em filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH): “Fiz um ano do curso com muita paixão, lendo tudo com muito gosto mesmo, Descartes, Aristóteles...”, mas teve de abandoná-la porque a TV Cultura o chamou para o “Metrópolis”. Um programa cultural, “um avanço em relação aos hardnews”, não só porque o assunto era interessante, “cultura, que envolvia meu gosto por teatro, cinema, literatura, mas também porque era uma oportunidade de trabalhar mais os materiais".
"Ali eu chegava às 13h e tinha até às 21h, quando íamos ao ar, para trabalhar uma grande entrevista, por exemplo, com Fernanda Montenegro. Ali aprendi muito sobre artes plásticas, porque meus colegas gostavam mais de música, das coisas mais pop, e sempre me dediquei mais a temas cabeça [risos], então fiquei, preferencialmente, como editor de literatura e de artes plásticas, de 1993 a 2000, quando me tornei editor-chefe do programa até o ano de criação do 'Entrelinhas', 2005".
Esse período, ele o classifica como uma pista dupla: “Como filosofia era à tarde ou à noite, deixei-a e passei a frequentar matérias optativas na Letras pela manhã, para conciliar estudo e trabalho. Fiz muitos cursos de literatura brasileira, minha grande paixão, como todos os do Alfredo Bosi [acima] não importando se era Brasil Colônia, Modernismo, Romantismo, até que, num dado momento, vi que já tinha uma graduação, estava com 32 anos, era hora de pensar num mestrado, e comecei a pensar em um projeto".
Para a literatura ficar bem na TV
Por ter “essa ‘coisa’ muito forte com literatura”, ele admite que a relação desta com a televisão rendeu muita conversa em sua vida: “A literatura cabe ou não na TV? É um tema pesado? O público de TV está a fim desse conteúdo?”, e “dando murro em ponta de faca”, acreditando que “água mole em pedra dura...”, se viu “tentando fortalecer a editoria de literatura, e, aos poucos, esta ideia foi amadurecendo: ‘E se saísse do ‘Metrópolis’ e projetasse um programa de literatura onde esse conteúdo ficasse naturalmente abrigado, sem parecer uma coisa espúria, clandestina”?, processo que durou alguns anos.
Os ensaios começaram aproveitando as lacunas naturais: “no mês de janeiro, fraco para a cobertura cultural, propondo programas especiais, alguns dos quais viraram documentários à parte, o que foi um exercício de linguagem muito importante para pensar o que seria um programa de literatura que não um mero talkshow, como os de Edney Silvestre [à esq.] e Bia Correa do Lago [‘Umas Palavras’]”. Ele reconhece que ver o autor falar é muito legal, as entrevistas são interessantíssimas, mas acreditava que havia espaço para um programa “com cara de revista, com recursos de edição, em que eu pudesse, de algum modo, transformar a literatura em um conteúdo que ficasse bem na TV”.
Como um personagem de Graciliano Ramos
Falando assim, diz ele, “parece que foi rápido, o que me lembra Paulo Honório, em São Bernardo, quando conta como construiu a fazenda. Em um parágrafo, parece que foi fácil, mas vai cavar ali o espaço, procurar as oportunidades e enfrentar as resistências? Além disso, a permanente crise da emissora dificultava a implantação de um programa novo, porque mesmo no ‘Metrópolis a literatura parecia fora de lugar”.
O aprendizado que ecoa na atividade como professor
Mas Ivan reconhece que foi nessa experiência com o jornalismo cultural no "Metrópolis", valorizada para além da literatura, que aprendeu muito sobre a cena cultural. Para sua formação, inclusive como professor hoje, foi superimportante, "porque nunca iria, espontaneamente, a tantas exposições. Quase todo dia eu editava ótimas entrevistas, com artistas plásticos muito bem formados, os quais, ao apresentarem uma Carmela Gross ou uma Regina Silveira e exporem seus conceitos, recorriam a um grande número de referências, verdadeiras aulas de artes plásticas".
Entretanto, no caso da literatura, arte considerada tão elitista, esse tipo de pauta “é interessante para um programa de variedades, como o ‘Metrópolis’? Quem lia ali naquela redação? A maioria não lia, não queria ler e tinha raiva de quem lia. Falar de João Gilberto Noll numa reunião de pauta não era garantia de que esse nome tivesse apelo. Eu tinha de argumentar, dizer que era pessoa muito culta, com uma obra consistente, que renderia uma ótima matéria.
Falta de cumplicidade
Além do desinteresse dos colegas por literatura, outra dificuldade era a falta de cumplicidade deles, uma vez que as coberturas pop tinham um espaço muito maior. Uma matéria sobre o mangue beat, sobre Chico Science [1966-97, à dir.], tinha por pressuposto a ideia de que era mais televisiva, e sem dúvida era, porque há áudio, música, gente dançando”. Portanto, o traço característico desse período foi cavar oportunidades, argumentar em favor de certas pautas: “Se havia uma entrevista interessante, eu conquistava um espaço maior usando os recursos de edição que estava aprendendo, praticando ali, para aproximá-la mais das outras de cinema, dança, artes plásticas etc.”
Vários fatores confluem para maior espaço da literatura
Quando a Festa Literária de Paraty começou [em 2003, cartaz à dir.] a literatura teve um grande impulso e “essa cobertura se tornou um pouco mais natural, sendo o ‘Entrelinhas’, talvez, produto disso. Parece que houve, de fato, um movimento iniciado na Flip que coincidiu com outras ondas culturais no início dos anos 2000, como as exposições gigantescas da Pinacoteca do Estado, um momento de efervescência cultural de que a literatura se beneficiou, além, sem dúvida, do crescimento do mercado muito acentuado na mesma época, tornando as pautas de literatura mais naturais, não tão deslocadas”.
Das iniciativas nesse caminho de concepção do "Entrelinhas" ele destaca “uma matéria pequena que sugeri para apresentar a nova geração de poetas brasileiros. E ela cresceu tanto que virou um programa, de alta repercussão, chamado 'Versos diversos, a poesia de hoje'”. O resultado favorável o animou e propôs outros documentários: um sobre Patativa do Assaré, quando foi ao Cariri, e outro sobre a poeta Orides Fontela [1940-98, acima], "recém-falecida e com a qual havia uma entrevista inédita na emissora. Eu sabia que tinha um assunto bom, que muitas pessoas da universidade, como os profs. Davi Arrigucci Jr. [abaixo, à dir.] e Olgária Matos, gostavam dela, e percebi que dava para armar um pequeno documentário sobre a Orides”. Tais experiências só fortaleceram sua convicção: “a TV não é um meio incompatível com a literatura e é possível ilustrá-la”.
Conquistar leitores através da literatura é uma boa estratégia
Na decisão das pautas “havia sempre um desejo de pensar a televisão como algo que deveria ser considerado em primeiro lugar também, e o 'Entrelinhas' se beneficiou muito dessa ideia, pois queríamos que fosse um programa de literatura, e não simplesmente de livros”, caso contrário ele não teria identidade: numa semana eu poderia falar de um livro de arquitetura, na outra, de engenharia ou de jardinagem, pois livro é livro. Até hoje há essa confusão, as pessoas acham que literatura e livro são a mesma coisa. E eu dizia para os colegas que faziam o programa comigo, para as chefias a que respondia, que precisávamos de uma identidade que fizesse dele um programa de literatura, pois acredito que é a partir dela que a gente pode mover o interesse das pessoas pelo livro; e conquistá-los através da literatura é uma boa estratégia”.
Programa de literatura e de televisão
Outro princípio era de que deveria ser um programa de literatura e também de televisão. "Nada de jogar um texto na tela ou fazer um autor ler por 5 minutos, como se isso funcionasse em TV. Não funciona! Assim, comecei a pensar que se deveria visualizar as matérias”. E exemplifica: “Se o Milton Hatoum [à esq. foto: revista Cult] lança um livro, é muito melhor entrevistá-lo em Manaus, por mais difícil que isso seja. E digo isso porque fui à casa dele (na época em Higienópolis, bairro central de São Paulo) quando do lançamento de Dois irmãos, ainda no 'Metrópolis', e achei tão bonita a entrevista à medida que ele ia recuperando toda a história da cidade, da imigração libanesa e da modernização voraz, um de seus grandes temas, destruindo a paisagem, as culturas locais, e pensei: ‘Meu Deus, pra TV o que funcionaria era estar com ele em Manaus’.
E foi o que fez quando Cinzas do Norte foi pulicado. "O ‘Entrelinhas’ já estava no ar e aproveitamos a oportunidade de fazer uma ou outra viagem. Desse modo se ganha tanto em termos de linguagem quanto de concretude e se transforma a literatura em algo mais visível, palpável. O critério foi sempre esse: entrevistas interessantes que também pudessem ser trabalhadas de modo televisivo, explorarando recursos audiovisuais”.
A poesia na TV
Um dos gêneros em que percebeu que se podia explorar os recursos audiovisuais foi a poesia: “Algo difícil, mas que funcionava muito bem, pois se pega poetas como a Orides ou o Chico Alvim [à dir.], cujos poemas curtos podem ser jogados na tela com um áudio, e os trabalhamos quase como se fossem um poema concreto. Tanto que percebi, a certa altura, que o espaço dado à poesia no ‘Entrelinhas’ era muito maior do que o espaço que os jornais, em geral, lhe davam.
Em outra ocasião, quando Alberto Martins [à esq.] lançou Cais, "um título maravilhoso, com poemas lindos, fomos a Santos e passamos o dia com ele. Como não tínhamos autorização para filmar no porto, conhecendo a cidade ele nos levou para um lugar próximo, onde pegamos um barco e fomos para uma área meio periférica, com pessoas, pescadores... E percebi que esse local tinha mais a ver com, digamos, o cotidiano menor, apequenado, com a percepção dele, com sua poesia, do que os guindastes gigantes. Ou ir até o Capão Redondo [bairro da Zona Sul de São Paulo] falar com o Ferréz [à dir.]. Essas coisas foram muito fortes e tenho saudade dessa possibilidade de passar um dia com um escritor, circulando onde ele se formou, ou no qual escreveu sua obra. E são as grandes matérias das quais me lembro, e todas lindas. A regra era sempre essa: colher o ambiente, produzir imagens, justamente porque havia esse desafio posto de saída: mostrar que havia possibilidades de fazer o cruzamento literatura-TV".
Na prática, foram "essas descobertas que constituíram a base do ‘Entrelinhas’, configurando-o como realidade, algo que as pessoas reconheceram que deu certo. Alguns alguns programas às vezes são reprisados, cogita-se recolocá-lo no ar, mas falta verba. E, se voltar, não serei mais eu a fazê-lo, primeiro porque não é possível dar aula e tocar o programa, muito trabalhoso, segundo porque na universidade a dedicação é exclusiva”.
Quem fazia o “Entrelinhas’
Para essa experiência meio revolucionária, a equipe era minúscula, tanto que ele começou a fazer entrevistas, "a colocar minha cara na TV, diferentemente de antes, quando era uma pessoa de bastidor, de edição, de pauta. Além de pequena, a equipe era nova, sem experiência com a literatura, eu a estava formando, pedindo para lerem livros, entrevistarem, editarem. Se não me engano, eram 5 pessoas e só eu tinha certa experiência. Mas todas agarraram aquilo com paixão, com vontade de fazer algo novo, porque perceberam o potencial que havia. Hoje sei que elas cresceram enormemente porque aprenderam muito da cozinha da TV, como se grava, se edita etc.”.
"Gente, isso não é televisão"
Das tarefas, uma das mais complexas eram as entrevistas. “Entrevistar um autor não é simples e os escritores nem esperavam que estivéssemos tão preparados; achavam que não tínhamos nem tempo para ler seus livros” [à esq. Vera Lúcia de Oliveira, 24/8/2006, fala sobre No coraçao da boca, imagens: Paula Montoro]. A maioria das pautas era decidida com 2, 3 meses de antecedência, salvo as que se impunham pela imediaticidade, como um prêmio literário ou falecimentos. Mas a pressa que os jornais têm, ou a necessidade de darem todos no mesmo dia o lançamento de um livro, não havia. “Podíamos dar 3, 4 meses, às vezes, até um ano depois, porque não tínhamos concorrência; foi um período de muita liberdade de pauta, liberdade estética, de autonomia, e o resultado foi uma coisa diferente das outras produzidas em TV, como um ator lendo um texto. Aí eu pensava: ‘Gente, isso não é televisão’, o que também digo na faculdade: ‘Precisamos conhecer o veículo, porque um jornal impresso pode dar um fragmento de Machado de Assis [1839-1908] muito bem, mas não dá a cena de um filme, o que a TV pode fazer. Essas coisas são obvias, mas fazem você dimensionar a linguagem que tem em mãos. O importante é entender a especificidade. Não acho que caiba na TV a apresentação de um conto de Machado, por mais curto que seja. O que se apresenta tem de estar ali equilibrado com outros elementos para se constituir numa linguagem"
A função da crítica
Tema recorrente a vários profissionais, quer da universidade, quer do jornalismo, ele acredita que vivemos hoje um processo iniciado há algum tempo e que se acelerou muito nos últimos anos: “a extinção do espaço para a crítica ou para a literatura na imprensa. O que era a atividade crítica no jornalismo, não na universidade? Porque temos de pensá-la nesses dois nichos. Lá pelos anos 1940, havia Álvaro Lins [1912-70], Mário de Andrade [1893-1945], críticos pré-universitários, mas muito rigorosos. Antonio Candido tinha seu rodapé na Folha da Manhã e toda semana lia autores importantes que estavam sendo publicados, como Clarice Lispector [1920-77, abaixo], João Cabral de Melo Neto [1920-99, à dir.], e produzia uma peça crítica. Inclusive alguns de seus textos raros foram reunidos pela Editora 34, organizados por Vinicius Dantas, sob o excelente titulo Críticas de intervenção, tanto destinadas ao público, porque o jornal tem seus leitores e quer conversar com eles, quanto à intervenção na cena e na prática literária. Quando João Cabral estreou com Pedra do sono, que, por um lado, é cubista, e, por outro, surrealista, Antonio Candido o incita, o estimula a escolher um desses dois caminhos e João Cabral percebe que sua carreira, seu sucesso, sua evolução como poeta dependia um pouco dessa escolha. Esse tipo de crítica não temos mais”.
Nanorresenhas
Além do objetivo dos textos dos críticos mencionados, outro aspecto que ele destaca é o do espaço físico em si, bastante reduzido, bem como “se questiona se há hoje diálogo como no passado”. Em contrapartida, se perdeu espaço na mídia tradicional, da qual mais ninguém depende, cresceu muito em outros, como a internet, “onde há mais diálogo, uma circulação muito ampla, ao mesmo tempo que a crítica atual está muito mais para resenha, e uma resenha cada vez menor, micro, nanorresenhas”.
Tal percepção das grandes mudanças citadas não é nova, vem do "Entrelinhas". “Me incomodava receber releases e depois vê-los publicados nas colunas de lançamentos. O crítico desapareceu e o editor tornou-se a instância de decisão. E o que ele faz, sobretudo se está numa grande editora, é pautar o mercado, o jornalismo cultural, não havendo outra instância de discussão daquela obra. O jornalismo cultural virou essa reprodução de releases; e, quando não os reproduz, parece que está reproduzindo o modelo do release, algo que passa mais pela divulgação e mobilização de estratégias de sedução para vender um produto do que propriamente pela sua discussão e problematização. Até porque”, ele destaca, “vivemos uma época em que parece que tudo pode, em que ninguém mais detém a verdade do que é um bom texto ou a boa literatura.”
Em contrapartida, a crítica universitária está em situação diferente: “Há muitas faculdades de letras, muitas teses sendo escritas, a academia é um espaço importante para o aprendizado, inclusive do que é a verdadeira crítica”. Já no jornalismo, há um vazio, muita diluição. O ‘Entrelinhas’, sabíamos, não era um espaço de crítica, mesmo assim tínhamos uma rede de colaboradores para contemplá-la um pouco. Eles propunham: ‘Saiu um livro do Bernardo Carvalho [à esq.], gostaria de comentá-lo’. 'Perfeito, mas faça um texto crítico, se não gostou, diga’”. E mesmo com esse cuidado, ele reconhece que aquele espaço não permitia aprofundamentos.
Mas o que é a crítica?
“Ao decidirmos uma pauta, definirmos o que merece uma entrevista de 10 minutos, já estamos exercitando a crítica. Quem assiste ao programa vê que aquilo mereceu um espaço, foi bem avaliado. Há outros modos de fazer a crítica, cujas funções são várias, embora, infelizmente, nenhuma delas esteja sendo bem coberta hoje. A crítica serve para o autor, para o leitor e também para os próprios críticos. Se pensarmos na crítica universitária, ela funciona entre pares. E o que é a crítica universitária? Sempre digo isso a meus alunos: ‘Por que temos de ler Antonio Candido [à dir.], Alfredo Bosi e outros? Porque nosso trabalho só se justifica a partir do conhecimento do que já foi dito sobre determinada obra. Se penso em algo canônico, como Clarice Lispector, só posso me arvorar, me aventurar a escrever sobre ela e achar que estou dizendo algo novo se souber o que já foi dito. O discurso, hoje, é entre pares, parece que os críticos leem a si mesmos, sem a pretensão de serem lidos fora da universidade. Já na imprensa, podemos pensar que a crítica se dirige ao autor, lhe dando um toque, ‘Olha, você pode melhorar aqui’ e, sobretudo, imagino que se dirija a um leitor. Mas, com o predomínio dos recursos do release, temos a chamada diluição da crítica”.
Quem lê jornal hoje?
Considerando alguns autores que, parece, não podem ser criticados, ele aponta outro aspecto negativo da imprensa. “Gostaríamos que ela fosse mais livre, mas tem muitos rabos presos, muito comprometimento, bem como, às vezes, a ideia de que o leitor não quer uma discussão crítica, mas algo mais raso. Atualmente, a discussão sobre a imprensa é grande e há uma crise instaurada, inclusive de identidade. ‘Quem é o leitor dos jornais?’ ‘As pessoas continuam lendo jornal ou não precisam mais dele?’ Os jornais estão minguando, desaparecendo, o que é curioso e até meio assustador”.
Cadernos de cultura: menos densidade, mais superficialidade
Lembrando a crítica “no século XIX ou na época do rodapé, seu papel era muito claro: o rodapé tinha sua legitimidade, era um espaço bom para a discussão crítica, mas desapareceu, sendo substituído, nas décadas de 1950 e 60, pelos suplementos de O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, um grande momento, sem dúvida, de grandes críticos, como Décio de Almeida Prado, Antonio Candido, as pessoas que formataram o 'Suplemento Literário' do Estadão [à esq.], mas que sumiram, dando lugar aos cadernos de cultura. Esses são cada vez menos densos, menos críticos, mais subservientes ao mercado e a isso que se chama, ou se imagina ser, o gosto do leitor médio. É o esvaziamento total. Para mim a universidade se tornou o lugar onde consigo trabalhar mais dignamente, porque na imprensa isso está muito difícil”.
Leitor: instância decisiva para a literatura
Sobre a relação com o público, Ivan lembra que no "Entrelinhas" as pessoas se manifestavam pelas redes sociais, havia os fóruns, conversas na rua, cartas com sugestões de pauta. “Em sua concepção, o programa abrigava a ideia de que o leitor também deveria figurar como personagem, pois é ele a instância decisiva para a literatura. Por exemplo: em livros do Machado, do Graciliano [1892-1953, à esq. foto: Helio Santos, 1952], da Clarice, percebemos o leitor incluído, ele não é algo externo ao texto ou à realidade criada pelo escritor, mas está nomeadamente presente: 'Você, leitor, deveria esquecer seu romantismo'. Numa pesquisa feita pelo meu colega na USP Hélio Guimarães sobre o leitor em Machado, esse é muito importante, sem o qual o livro é uma coisa morta. E tínhamos essa convicção, fazer o leitor ser um personagem, porque assim teríanos o universo dele e não entrevistaríamos só escritores. E valia desde convidar um ator, como o Matheus Nachtergaele ou o Paulo Autran [1922-2007], para falarem de sua experiência com a literatura, como ‘Eu li Grande sertão quando tinha certa idade e foi maravilhoso’, até entrevistar pessoas na Flip pra saber coisas básicas, como o que estavam lendo, ou para fazer perguntas mais específicas. Ou seja: mobilizava-se o leitor para que o público se identificasse com o programa. Houve também um terceiro nicho, que não mencionei: o universo do livro, sobre o qual ficou muito por fazer, embora a gente tenha coberto muito de design gráfico, de ilustradores etc.".
Um ensaio visual
Indo além, “se parecia que muita coisa não cabia em TV, havia uma quantidade de pautas de que não dávamos conta, como eventos, ou o Museu da Língua Portuguesa e suas exposições. Se alguém lançava um CD baseado em Macunaíma, era pauta para nós. De algumas, tenho muita saudade. Aliás, deixei de fazer ótimas viagens, uma das quais para Araraquara, das última pautas que sugeri, em que a ideia era localizar os lugares frequentados por Mário de Andrade, as fazendas dos tios, os parentes de Gilda de Melo e Sousa [1919-2005], para mostrar o ambiente de criação de Macunaíma, a banheira em que ele o escreveu [foto: Blog da Turminha], e foi excelente. Essas são as tais pautas televisivas de que falei: ao invés de entrevistar um crítico aqui, num sofá, para explicar por que esse livro é importante, vamos ao lugar onde Macunaíma foi criado, temos imagens, criamos um ensaio visual”.
Dois conhecimentos específicos fundamentais
O programa não fez escola, até porque é um projeto caro e, infelizmente, depende-se de pessoas (sem pecar aqui pela falta de modéstia), mas as coisas existem porque há pessoas produzindo um movimento, e o fazem porque têm experiência. No meu caso, havia a ligação com a literatura desde os primórdios da minha vida, alimentada pela experiência na universidade. Portanto para mim era muito confortável ir a lançamentos, falar com os escritores, e rapidamente me tornei muito conhecido na área. [Ivan com Arrigo Barnabé, à esq., foto: Julio de Paula.]
O livro mais sedutor e mais presente para as pessoas
"Na verdade, havia dois conhecimentos específicos naquela experiência: o entrosamento com o mundo literário e com o mundo televisivo. Sem esses dois lados, o projeto não teria decolado. É claro que há outras pessoas que podem reunir isso, mas é preciso que surja uma oportunidade e, nesse lugar, haja gente com essa vontade. Em suma, as coisas surgem e desaparem muito rapidamente. Para que se forme um contexto para que algo exista é preciso reunir várias peças."
"Na Cultura, no momento em que surge o ‘Entrelinhas’, havia um histórico de projetos planejados e engavetados de vários programas de literatura, alguns meus, quando estava no ‘Metrópolis’, ou mais antigos, mas que não decolaram. Por quê? Porque faltou uma peça, ou o estímulo, por exemplo, do crescimento do mercado editorial que tornou o livro mais presente e mais sedutor para as pessoas. Tudo isso temos de recuperar e de considerar na hora de contar a história de um programa."
[Na próxima postagem, Ivan fala sobre sua atividade como organizador, autor e professor universitário, sobre seus alunos, comenta sua participação na Fliporto, o curso de letras da USP e a formação dos profissionais para o mercado editorial e avalia a literatura brasileira contemporânea.]
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Ivan Marques é graduado em jornalismo (pela UFMG) e doutor em literatura brasileira (pela USP). Autor de Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (Casa da Palavra, 2013); Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (Editora 34, 2011, à dir.) e organizador de Histórias caipiras (2012); Clara dos Anjos e outros contos de Lima Barreto (2011); "O espelho" e outros contos machadianos e Histórias do Modernismo (ambos de 2008); Histórias do Pré-Modernismo (2007); Histórias do Romantismo e Histórias do Realismo (ambos de 2006, todos pela Editora Scipione); e Melhores poemas, Augusto Frederico Schmidt, Global (2010).