Em 2005 Silvana Salerno recebeu a distinção Amigo do Livro, da CBL, pelos 25 anos de dedicação ao livro. Dois anos antes, a menção Altamente Recomendável, da Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil (FNLIJ), pela tradução e adaptação de Ilusões perdidas (de Honoré de Balzac), instituição que lhe concedeu, por Viagem pelo Brasil em 52 histórias, o prêmio Melhor Reconto em 2007 e, no ano seguinte, a menção Altamente Recomendável.
Do jornalismo para as letras
Nascida em São Paulo, em 1952, de família italiana, cuja avó, Gioconda Rizzo, foi a primeira fotógrafa brasileira (leia mais), e a levou a flertar, ainda adolescente, com essa arte, Silvana entrou em 1970 em jornalismo na Escola de Comunicações de Artes (ECA), curso então recém-criado na USP. No último ano do atual ensino médio, uma amiga, sabendo o quanto Silvana gostava de escrever, o sugeriu: “Foi uma surpresa”, diz hoje. “Na época o primeiro ano era comum e só no segundo optávamos por uma área.”
Naquele período, a ECA era uma faculdade muito livre, “que não se aprofundava em nada, mas proporcionava uma pincelada de cada coisa, tanto em comunicação quanto em artes”. Dos professores, lembra-se de Egon Schaden [à esq.], de antropologia, disciplina pela qual se apaixonou, e quem lhe sugeriu uma pós-graduação nessa área ou em história. De suas muitas conversas, concluiu que um bacharelado seria melhor, “para aprender direitinho”, mas ao concluir o jornalismo foi para a letras, porque já estava ligada à literatura.
Ao se matricular no novo curso, "pedi inscrição em espanhol e alemão, línguas que não sabia, porque inglês e francês tinha tido na ECA, e me disseram: 'Mas você pode pegar três matérias, entrou em terceiro lugar', o que foi uma boa surpresa, mas fiquei só com duas. Depois fiz cursos de extensão, de sociologia e de antropologia, na Ciências Sociais e na PUC, cursos avulsos, com o Florestan Fernandes [à dir., 1920-90], e um ano inteiro na filosofia, onde fiz até prova, mas não concluí o curso.
O início da carreira
Um anúncio no mural da faculdade propiciou o primeiro emprego, em 1972, na Editora Abril, “pertinho de casa, mas só fiquei 2 meses”, porque logo em seguida o Circulo do Livro começou a montar sua equipe, ela se candidatou a uma vaga e, depois de uma série de testes rigorosos, foi aprovada. “Criado pela Editora Abril, com 41% do capital, e o Grupo Bertelsmann [à esq. sede em Güterlosh, foto: site do Grupo], com o restante, o Círculo do Livro tinha como editor editorial João Noro, que veio da Abril, e começamos a trabalhar antes mesmo de haver uma sede, fazendo a revisão dos primeiros livros em casa. Éramos quatro revisores. Depois, com endereço perto da Av. Paulista, um grupo de pessoas da Abril foi pra lá. O editor do Círculo era Fernando Nuno, que também veio da Abril, assim como Fátima Couto, a chefe da revisão e preparação. Foi uma editora maravilhosa, porque havia liberdade para editar o que era de qualidade, sem pressão violenta. Claro que havia o best-seller, mas tinha também as áreas de literatura, referências, filosofia, teatro... e chegou a ter 1 milhão de sócios. Os alemães não interferiam, exceto em apoio, porque tinham clubes de livros no mundo todo. E a Abril foi aquele marco maravilhoso que conhecemos, com coleções como ‘Arte nos séculos’, ‘Gênios da Pintura’, ‘Medicina e Saúde’, ‘Música Popular Brasileira’, tudo muito bem-feito, com gosto, de qualidade. Foi um projeto muito bom, que durou bastante tempo até que, com a saída dos alemães e a morte do dono, a nova geração que não era da área mesmo acabou rifando e fechando a editora. Mas foi um trabalho bem legal.”
Dois anos depois, ela e Fernando, que conheceu na faculdade e entrara no Círculo um pouco antes, se casaram. Como não se permitia parentes na empresa, ela se demitiu. Como resposta a um dos muitos currículos que enviou, pedindo um revisor de português, ouviu: “Você foi aprovada e vai para Barcelona”. Com o curso em andamento, indicou uma amiga. “Ela foi, se casou com um jornalista brasileiro e nunca mais voltou. Hoje moram nos Estados Unidos.”
Outra resposta foi a da Editora Ática, na Liberdade, Centro de São Paulo. Enquanto fazia o teste, numa sala superescura, sem janela, ouviu uma campainha: “Era o sinal para tomar café e ir ao banheiro. ‘Tem de tocar uma campainha para ir ao banheiro?’”. Angustiada, e simultaneamente vendo um emprego na TV Cultura, dispensou a editora.
Perspectivas no exterior
Formada, pensou em estudar no exterior. “Fui ver onde havia jornalismo e descobri a Universidade de Louvain, na Bélgica, com um programa que parecia interessante para uma pós-graduação. Propus um tema muito genérico, algo sobre as relações de desenvolvimento do Terceiro com o Primeiro Mundo”. Enviado o projeto, foi aceita, verteu ela mesma para o francês o diploma, o histórico escolar e outros documentos. O Itamarati daria a passagem aérea, e a universidade casa, passagens de trem, uma boa ajuda de custo e também uma bolsa para marido e filhos, se os tivesse. “Uma coisa maravilhosa."
Uma mochilinha nas costas
Outra perspectiva, no entanto, estava em andamento e a fez desistir da Bélgica. O pessoal da ECA e alguns alunos da FAU queriam comemorar a formatura viajando, mas só três levaram o projeto adiante. Instigados pela amiga Matilde Araki, desejosa de conhecer a África negra, Silvana, Fernando e Silvia Penteado compraram uma passagem, só de ida, São Paulo-Dakar-Casablanca e embarcaram “com uma mochilinha nas costas, onde tinha de biquíni a casacão para o frio”, sem data para voltar. A Matilde não foi. “No Senegal, ficamos 20 dias, sendo recebidos e almoçando na casa das pessoas. Dois dias depois de eu chegar a Dakar fiz 23 anos e comemoramos numa boate, com um senegalês que conhecemos lá.”
Depois foram para o Marrocos e viajaram todo o país até Ouarzazate, na porta do deserto, fronteira com a Argélia. A amizade com um estudante os levou à Grande Festa do Trono, a festa do rei. Tomaram um ônibus, depois um trator, viajaram na caçamba, e foram. "Chegamos à noite, havia muita música e dormimos na casa de um conhecido na fronteira com a Argélia, num posto militar, sem banheiro. A gente tinha de usar o deserto.” Saindo da África, onde ficaram 60 dias, foram para Gibraltar, Málaga, Espanha e Portugal, onde participaram da comemoração do primeiro ano da Revolução dos Cravos. “O Fernando nasceu em Portugal e veio para o Brasil bebê. Por isso se ele ficasse mais de 3 meses no país teria de servir o Exército, envolvido na época na guerra na Guiné-Bissau. Arrumamos vários empregos, um dos quais de correspondente de guerra. Em Portugal, soubemos de um curso de História de Arte em Florença, de dois meses, e fomos fazê-lo, uma experiência muito legal. A Itália foi uma surpresa maravilhosa. Com as principais cidades governadas pelo Partido Comunista, a passagem de ônibus era praticamente de graça. Almoçávamos em restaurantes estudantis fantásticos, com tudo muito fresquinho e de primeira qualidade, com água ou vinho pelo mesmo preço. As facilidades eram muitas, havia gratuidade em museus e estudantes tinham desconto em lojas, em galerias de arte e até em butiques. A carteira de estudante era um passe para muita coisa.”
Estudando mais um pouco
Da Itália, de novo para a Espanha, a França e a Grécia, onde fizeram um curso de mitologia, de 15 dias, “simples, mas muito interessante, os professores tinham muito conhecimeto, e no qual ficamos imersos o dia todo. Íamos aos lugares, na volta nos reuníamos, estudávamos, escrevíamos, foi uma experiência muito rica”. Em seguida, Alemanha, Iugoslávia e um mês na França, onde ela se matriculou num curso livre na Sorbonne. “Aí voltamos. O Fernando queria ir à Ásia, mas optei por voltar porque estava com muita informação. O saldo foram muitas descobertas, uma das quais o Le Monde Diplomatique, um jornal maravilhoso, que líamos diariamente, porque esse período para nós, do Brasil, era uma época de muita alienação, sem acesso às informações, ao conhecimento, tempos de ditadura, de um governo muito nacionalista.”
As consequências das convicções políticas
Na volta, indicada para o Diário Popular, que passava por uma renovação, foi para a editoria de internacional. Sua proximidade com o Le Monde Diplomatique permitiu que comprassem os direitos de várias matérias que ela mesma traduziu: “eram páginas e páginas de matérias bem interessantes, com enfoque de analistas internacionais bem conhecidos". Depois de dois anos, deixou o jornal, por causa da participação na greve da categoria.
"Saída" do Dipo, começou a fazer frilas para a Folha, no “Folhetim”, cujo editor era o Tarso de Castro [à dir., 1941-91], com uma equipe bem legal e gente que tinha trabalhado no Bondinho. Ali sua primeira matéria, de várias páginas, foi sobre estupro, "um tema pesado, a maioria dos casos não é denunciada porque ocorre na própria casa, por pais, tios, avós, e ainda havia a demora da denúncia até a prisão e o processo. O chefe de reportagem era o Myltainho [Mylton Severiano da Silva]. Jornalista maravilhoso, ele me orientou, a matéria ficou boa e fiz várias outras".
Viajantes contumazes, “esse sempre foi o nosso luxo”, antes daquele ano e pouco europeu, já tinham rodado muito pelo Brasil. Em todas as férias, “considerando nosso custo-benefício muito bom, com um salário que nem se compara ao que é hoje, não se gastava muito e os países do Mediterrâneo eram muito baratos, alguns mais que o Brasil, como Portugal, Espanha, Grécia, Iugoslávia. Assim, viajávamos sempre e nas férias em que fomos para Barcelona entrevistei o Eduardo Galeano [acima] para o ‘Folhetim’”.
Esse emprego, entretanto, também foi perdido por conta de seu ativismo. “Veio a grande greve dos jornalistas [em 1979; em assembleia, foto: Jesus Carlos] e fiz piquete na Folha”.
Ao sair da imprensa diária, uma colega, Elda Müller [abaixo], que deixara a Casa & Jardim, a principal revista de decoração do Brasil, para assumir a Casa Cláudia, “me indicou para o seu lugar, como diretora de redação. A revista era muito visual, deu para fazer bastantes mudanças, uma vez que era mais ou menos comandada pelas casas decoradas pelos profissionais da área".
Como as edições eram quase todas iguais, seguiam um padrão, ela propôs uma mudança muito bem aceita: uma "seção que mostrasse a casa e o ateliê, algo raro na época, de pessoas como artistas plásticos, artesãos. Um deles foi o Nicola, um tapeceiro muito legal, e assim entraram Thomie Ohtake, Manabu Mabe e outros grandes nomes. O aprendizado ali foi bem legal e fiquei três anos trabalhando em período integral”, até sair, dessa vez não pela atuação política, mas por ser “mal negociante”.
“Ao tratar com o diretor, da revista, disse: ‘O salário é tanto mais tudo o que for conseguido com a greve’. No entanto, a greve dos jornalistas foi o maior fiasco de todos os tempos, porque a diretoria do sindicato achou que os gráficos também iam paralisar suas atividades, mas eles não aderiram. A partir daí o sindicato perdeu sua força e começou a acabar o poder da categoria. Não houve mais ajustes anuais, nem discussões, nem dissídios, nada! A Folha trouxe [para substituir os grevistas] todos os seus colunistas para ‘morarem’ na redação, como o Paulo Francis [à esq.], que estava em Nova York, o Claudio Abramo [abaixo, à dir.] e outros. Para mim essa greve foi marcante."
Sobre a negociação, ela recorda "Tinha recebido, como frila, no último mês, 26 mil [da moeda da época], e foi esse valor que propus, ou seja: eu mesma sugeri ganhar o mesmo que recebia como frila, ocupando uma função altíssima, com uma equipe bem grande de repórteres, redatores, produtor fotográfico, fotógrafos, além de, como chefe, ser meio psicóloga, aparando as arestas das brigas, porque sempre havia aquela disputa redação x arte, como o dia em que o fotógrafo, muito brincalhão, subiu no telhado e não queria sair, porque a repórter fez não sei o quê. Enfim, tinha de tudo. Quando o Diego, meu primeiro filho nasceu, reduzi meu expediente para meio período e isso funcionou bem. Fiquei três anos na Casa & Jardim. Dez anos depois, fui chamada novamente para dirigi-la. Outras pessoas já tinham passado por lá, e o [Fernando] Calmon, ex-diretor da AutoEsporte, que se tornara diretor-geral da revista, pertencente à família Chinaglia [da distribuidora homônima], me chamou. Mesmo me carregando no colo, me dizendo ‘A revista nunca foi tão linda como no período em que você esteve aqui’, não voltei, porque os caminhos ja eram outros. Indiquei uma pessoa, não deu certo, e no fim ela foi vendida para a Editora Globo."
O começo de uma nova carreira
Ao deixar a Casa & Jardim, Silvana fez uns frilas para revistas, como Claudia, e voltou ao Círculo do Livro, do qual de fato não se desligara, pois fazia traduções para eles. Essa atividade, ela a iniciou por indicação do Fernando, que a apresentou ao editor Ênio da Silveira [à dir.], da Civilização Brasileira, uma das mais importantes do país à epoca, e a quem sugeriu um roteiro não filmado do diretor Pier Paolo Pasolini [abaixo, à esq.], cuja obra como romancista a encantou, e aquele livro mostrava os descompassos da África descolonizada. Nesse ínterim, recebeu várias propostas, como a da IstoÉ, para fazer o caderno de fim de semana que seria criado, mas não aceitou, e nos dez anos seguintes dividu-se entre um pouco de jornalismo e muito trabalho editorial, redigindo orelhas e quarta capas, preparando textos, traduzindo e fazendo entrevistas para revistas literárias.
Antes, porém, da revista Design, Silvana foi para a Editora Globo, onde havia a revista Querida, para adolescentes, que teria um filhote, chamada Superstar, cujo projeto elaborou a pedido do diretor da revista, Gabriel Manzano [abaixo à dir.], e da qual se tornou diretora, trabalhando com uma equipe era pequena. Ali ficou pouco tempo. Nesse período fornecia nota fiscal do Estúdio Sabiá, criado em 1992, “de início para atender o João Noro, ex-diretor nosso no Círculo, que nos propôs alguns projetos, os quais, com o tempo, se tornariam nossa atividade principal: desenvolvimento e coordenação de projetos, tradução, preparação, revisão..."
Em seguida, como o Círculo do Livro estava para fechar, Adélia Borges, diretora da Design Interiores, precisava substituir uma editora e ela foi chamada. "Fiquei lá uns dois anos e foi interessante. Já estávamos na década de 90, período de inflação altíssima, então “negociei meu salário em dólar. No ano seguinte, veio o Plano Real e o diretor, um negociante muito esperto, me disse: ‘Olha, não posso arcar com seu salário integral, mas posso pagar uma parte em dinheiro e a outra em espécie’. Isso na década de 90, século XX. Nessas revistas as permutas eram algo normal, então pensei: 'Do que preciso? De uma biblioteca'. Por coincidência, nessa época um marceneiro e arquiteto conhecido queria um informe publicitário sobre móveis de madeira, e, em troca, fez a nossa biblioteca, do jeito que eu queria, o que significou vários salários compensados. Depois foi um tapete, mas aí a situação já tinha se tornado insustentável. No fim ele vendeu a revista, mudamos de endereço, a Adélia saiu, depois eu saí e a publicação teve vida breve. Mas era um revista importante, abordava muitos assuntos, cobria as Bienais de todo o mundo, havia um intercâmbio muito ativo, porque a Adélia [abaixo, à esq.] e outras pessoas tinham feito um trabalho de campo maravilhoso. O grupo participava de prêmios, e de lá para cá o design só cresceu. Como redatora-chefe, cheguei a contratar a Ibraíma [Dafonte Tavares], que tinha sido revisora e editora-assistente do Fernado no Círculo, era professora de inglês e na ocasião estava só frilando".
A partir daí Silvana dedicou-se só ao Estúdio, traduzindo e fazendo produção editorial para grandes editoras, como Nova Fronteira, Melhoramentos, Globo, inclusive de fascículos, uma demanda crescente na época. "Cheguei a fazer uma série de 96 fascículos de arte. Nessas traduções um dos meus objetivos era trazer a realidade que via no exterior para o público brasileiro em livros práticos, porque muita coisa não havia aqui, nem mesmo importada. A cada trabalho era um novo grupo discutindo e indo atrás dos especialistas daquela área. E nas obras grandes, fossem de referência, fossem de literatura, também era necessário se munir de material, porque as muito antigas iam receber novo projeto gráfico e tínhamos de cotejá-las com a primeira edição ou com a mais antiga que houvesse. Fizemos muita coisa de gastronomia, culinária, que entrou na moda, tanto para a Melhoramentos quanto para a PubliFolha, depois muitos livros de arte e infantis.
O trabalho do Estudio Sabiá
O estúdio nunca fez diagramação, sempre teve bureaus parceiros, e, "às vezes com o tempo, eles cresciam e começavam a delegar, sem ter quem acompanhasse, orientasse o trabalho, e era desastroso. Desastres muito grandes que a gente não via mas que apareciam na plotter, coisas ocultas...". Silvana aponta as mudanças na área e nas condições de trabalho propriamente ditas lembrando como era quando iniciou sua atividade profissiional. "Quando comecei, usávamos máquina de escrever, depois veio a fotocomposição. No Diário Popular, que nem era um jornal de primeira grandeza, tínhamos um diagramador e um ilustrador só para nós. Olha o luxo! Havia um caricaturista para a editoria de internacional. Na Globo, na revista Superstar, nem todos tinham computador, os textos eram datilografados, iam para a fotocomposição, depois para a diagramação, passavam por ajustes, eram fotografados, prismados, tínhamos esse tempo. Havia também profissionais com uma visão de espaço, de arte. A produção gráfica foi uma profissão que sumiu, mas é fundamental. Acho que só existe um curso no Sesi, o que é uma pena, porque quem faz paginação e diagramação hoje no computador não tem formação gráfica alguma, e o resultado é um desastre, porque só sabem usar o programa e precisam sempre de orientação. Na revista Design Interiores, durante certo período, a diagramadora só usava o InDesign e programas mais modernos, mas fazia coisas incríveis. Hoje vários recursos dos softwares resolvem problemas como linha ultra-abertas, espaçamento de entreletras, mas no período de transição não havia isso e foi terrível. Certa vez fiz um livrinho, num bureau superbacana, em cuja prova não se viam as últimas linhas do texto, embora eles insistissem comigo que elas estavam lá. Quando o material foi impresso, não estavam. Coisas assim aconteciam e acontecem mesmo com os avanços da tecnologia. Acho que deveria haver formação para o produtor gráfico, porque, além do aspecto estético, ele tem de ter a visão da relação da letras com a leitura, isso é fundamental. Poucas pessoas no mercado fizeram cursos, se interessaram. As demais precisam ter quem as oriente, porque, quando não têm...
O trabalho é só isso!
Houve épocas em que o estúdio foi absorvido por tantos trabalhos de produção, que me dediquie só a ele, porque precisamos cuidar de tudo pessoalmente. Certa vez uma editora me ofereceu um trabalho, relativamente simples, uma folhinha ilustrada, americana, para traduzir, que recusei porque íamos viajar. Aí a responsável me perguntou: ‘Mas você vê tudo?’. ‘Vejo, e essa folhinha, de cara, precisa de uma adaptação, por causa dos meses do ano. Vamos deixar a neve em dezembro? Talvez não se possa mexer por causa das fotos, mas outras coisas podem ser invertidas'. Ela ainda me perguntou se eu não tinha uma pessoa com quem deixar o trabalho. Depois soube que mandou o serviço para outra pessoa e acabou se arrependendo, porque nada é simples.
Tem gente que diz: ‘É só isso. Só tem 200 páginas. É só texto. O texto está bom. O autor é ótimo, você não vai precisar fazer nada’. Mesmo que seja um escritor maravilhoso, ficcional, como o Carlos Drummond, você tem de levantar as questões de critério, de ortografia. Nosso trabalho sempre foi assim. Quando é autor nacional temos de entrar em contato ou nos reunir com ele, mandar o livro, às vezes há aspectos de que ele faz questão. Virgulação, por exemplo, é uma coisa pessoal, mas pode-se apontar uma ou outra coisa. Em geral todo escritor é superaberto, agradece e, é obvio, nunca vamos mudar um sinônimo, mas há um trabalho a ser feito. Nenhum livro é simples. Às vezes falta um capítulo, ou o autor esqueceu alguma coisa, ou o sumário não veio, e você tem de ficar com mil olhos. E mesmo assim passa coisa errada. Ou quando o livro está pronto e o editor resolve acrescentar um prefácio. Aí joga-se tudo fora para colocá-lo e 'Será que vai fechar caderno?'. O trabalho com o autor nacional é um, com o livro traduzido, é outro.
Como traduzir
Quando começamos a fazer traduções no Estúdio, antes de dar o livro para o tradutor, eu já o trabalhava, primeiro para escolher o profissional e depois para inteirá-lo sobre como agir e quais critérios adotar. Porque só entregar o manual de padronização não funciona. Eles raramente o leem ou, quando o leem, não o absorvem. Por isso eu já anotava no livro, a lápis, as coisas básicas. Sempre tive tradutores ótimos, que trabalharam comigo por 20 anos, mas, se não fizesse isso, não rolava. E mandavam tudo traduzido, até o copyright, a ficha catalográfica, os créditos... Depois de entrgegue, a tradução era avaliada, item por item, o que dá um trabalho infernal. Internamente, não sei se as editoras hoje têm esse tempo. As que eu vejo, quase não têm.”
Para a tradução literária, ela segue o método da fluência. "Hoje não, mas antigamente dizia-se haver dois caminhos: a literal, para se sentir a estranheza do texto, para que o leitor percebesse que o original não em português, e a fluente. Ao traduzir, estamos recriando, o que digo para os meus tradutores. Eu mesma demoro muito para traduzir [à esq. sua tradução para o Círculo do Livro, em 1980], porque paro e penso como diria aquilo em português, com fluência. Você tem de pensar um pouquinho. Deve reler a tradução, mas quase ninguém faz isso. Ao reler qualquer coisa, por melhor que a pessoa seja, vai encontrar algum problema, isso é humano. Aqui há uma repetição que seria melhor eliminar, ou um verbo que está ruim. Ao reler, você queima etapas e ganha tempo, porque a preparação será menos pesada. Se não, os remendos vão aumentando. E a preparação e a revisão não pegam tudo. A base precisa ser muito boa para haver menos remendos. Por isso tantos jornalistas, como o José Geraldo Couto [acima] e outros, se encaminharam como tradutores, e são tão bons. Eles entram no aspecto da fluência, de pensar que, se em inglês se escreve assim, em português se escreve assado. Quando se traduz, mesmo mais ou menos literalmente, ainda não é português. Por quê? Porque há um monte de diferenças, como a virgulação. Se a pessoa adota a virgulação do inglês, fica um desastre. A mesma coisa acontece com vários ‘no entanto’, ‘entretanto’, com adjetivos, advérbios de modo, pronomes... E quando vamos ler encontramos: “o seu chapéu, a sua cabeça, o seu pescoço tinha o seu colar’, uma verdadeira loucura. Não estamos adulterando o livro, mas escrevendo em nosso idioma. Nos livros práticos a quantidade de adjetivos é atroz: ‘é bonito, é belo, é magnífico’. Um substantivo que precisa de tantos adjetivos não deve ser bom! Mas até os tradutores entenderem isso...
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Na próxima postagem Silvana fala de suas traduções, adaptações e recontos, entre os quais Viagem pelo Brasil em 52 histórias, Companhia das Letras, 2006, prêmio Melhor Reconto, FNILIJ, 2007.