O jornalista e professor Carlos Costa entrevistou Albeto Manguel para a revista Cásper. Com sua permissão, reproduzimos a conversa entre dois argutos leitores, dando início às atividades de Histórias do Livro em 2015.
Foto de Alberto Manguel por José Geraldo Oliveira
Não é difícil falar sobre Alberto Manguel. Ele já foi apresentado aos leitores da revista Cásper como “O homem que lia para Borges” (no. 6, junho de 2012). E em muitos de seus livros ele volta ao tema de sua trajetória. É possível reconstruir sua caminhada a partir de observações biográficas espalhadas em ensaios de seus livros À mesa com o Chapeleiro Maluco, No bosque do espelho ou O livro e os dias. A história de Alberto Manguel é a história de um leitor. Foi nessa função, como avaliador de novos autores e de edições de livros e antologias, que ele viveu uma experiência peregrina entre Buenos Aires, Milão, Paris, Madri, Londres, Taiti, até se fixar no “seu Canadá” de adoção. Reside atualmente numa cidadezinha do interior da França, e chegou ali por haver encontrado, numa velha casa paroquial ou presbitério, o lugar ideal para abrigar seus quase 50 mil livros. Comprou o presbitério meio arruinado, reformou também o celeiro, transformando-o em sua biblioteca. Há doze anos se estabeleceu ali para continuar suas peregrinações, agora participando de palestras e congressos, onde o tema é sempre o ato de ler. Para falar com a reportagem da Cásper, ele reservou uma tarde de sábado da segunda semana de janeiro de 2013. Ali, em meio a tantos livros raros e ordenados, se desenvolveu a conversa a seguir.
Em Os livros e os dias o senhor conta que ao voltar à Argentina, em 1973, seus livros não estavam mais lá. Isso é dito numa frase seca, sem comentar a dor que foi perder obras autografadas, como a da escritora Silvina Ocampo...
Eu queria que O livro e os dias fosse mesmo um registro de notas de leitura. Falei sobre isso em outro ensaio. Mas certamente naquela volta em 1973 senti como uma terrível surpresa. Pensei que os livros que havia deixado iriam estar ali e por distintas questões familiares já não estavam. Penso que para um leitor que sente a necessidade de possuir livros, sempre será assim. Foi como ter perdido uma parte de minha vida e identidade, boa parte de minha história estava ali. Sinto de maneira forte a identidade e a memória que os livros conservam. Aqui na minha biblioteca posso, a qualquer momento, tocar um livro e dizer a que período de minha vida ele corresponde, que eixos e relações há com outras obras. Se isso desaparece, desaparece um momento da vida. Recordo, mas já não existe. Uma das cenas mais terríveis de Dom Quixote é uma passagem narrada após sua primeira aventura. Ele volta para casa e o barbeiro e o padre decidem murar sua biblioteca e dizer que o feiticeiro havia levado os livros. A cena parece cômica, mas é intensamente trágica, pois é uma deliberada intenção de eliminar uma parte da pessoa do Quixote. O Alzheimer faz isso com a gente, nos tira o momento de nossa vida. No período de Mao Tse-Tung, por exemplo, os prisioneiros eram obrigados a reescrever suas autobiografias, censurando certas partes como se não houvesse existido e terminavam convencendo-se de que tal coisa não havia ocorrido e outra sim [longa pausa]. Para mim, perder uma biblioteca é algo similar a esses momentos terríveis.
O senhor, desde o livro inicial, Dicionário de lugares imaginários, tem o hábito de criar listas, algumas muito interessantes. Em O livro e os dias há diversas. Como o das cidades preferidas. Onde fica Saint John's?
Há dois Saint John's no Canadá. Essa Saint John's da lista fica na Terra Nova e é uma pequena cidade costeira de muita influência irlandesa. É um dos lugares do continente americano mais próximo geograficamente da Europa. Essa Saint John's me encanta por suas pequenas casas de pescadores e pelo clima feroz. Não acho possível que um brasileiro sobreviva ali.
E Poitiers, que na lista figura ao lado de Tiradentes e Bogotá?
Eu não conhecia Poitiers antes de descobrir esta casa há doze anos. Lugares chegam a nós da mesma maneira que pessoas. A gente se enamora de alguém ou alguém se converte em seu melhor amigo por uma absoluta casualidade. Cruzamos com uma pessoa na rua, conversamos com outra em um jantar. Com a cidade sucede o mesmo. Estávamos buscando um lugar para viver na França, pois não dirijo carro e queria encontrar uma casa próxima a uma linha de trem. No Canadá era complicado encontrá-lo, pois lá os trens desapareceram. E viver na cidade era muito caro. Tudo era caro também na França – sobretudo em Paris. Então, fui convidado para uma noite de autógrafos na livraria La Belle Aventure aqui em Poitiers. Descobri uma cidade que me encantou e fascinou. Enraizada na Idade Média, com uma das igrejas românicas mais lindas de todo o mundo. E havia uma oferta de casas a bom preço. Foi assim que descobri a cidade, as pessoas daqui foram generosas comigo.
E como chegou ao presbitério de Mondion?
Quando procurava casas em Poiters, um agente imobiliário me mostrou um velho moinho, um pequeno castelo. Eu disse que imaginava algum dia encontrar um pequeno mosteiro com um pátio ou claustro interior. “Não tenho um mosteiro, mas um presbitério. Quer dar uma olhada?” Vim e tive a certeza de que encontrara o que buscava.
Susan Sontag [à dir.] no livro Diante da dor do outro fez uma crítica aos intelectuais franceses, que em seus confortáveis gabinetes teciam análises sobre o conflito de Kosovo.
Que intelectuais franceses? É como mencionar “os escritores brasileiros”. Que escritores brasileiros, Paulo Coelho ou Moacir Scliar? Falar em termos genéricos abre espaço para não chegar a lugar algum, pode revelar um pensamento preconceituoso. Precisamos ser mais precisos e tomar o tempo para falar quando temos algo concreto a dizer. Há muitos autores franceses que me interessam, embora alguns deles tenham se convertido em uma forma de clichê.
Vargas Llosa [à esq.] em sua recente obra A civilização do espetáculo critica intelectuais franceses, como Baudrillard e Foucault.
Não sei se esses juízos absolutos são úteis. Dizer que Foucault não vale nada, isso não é argumentação intelectual. Há muitos pensadores franceses de peso. Por exemplo, não posso dizer que entendi todos os seminários de Lacan, mas ele aportou ideias importantes. As ideias de Foucault sobre a sexualidade são relevantes, da mesma forma os seus estudos sobre a prisão para definir uma sociedade fechada ou aberta. Não podemos simplesmente eliminar as teorias francesas. Susan Sontag, que fez teatro em Kosovo, teve a companhia de outros intelectuais franceses engajados que estiveram naquele campo de batalha tratando de ajudar e de entender coisas. As generalizações não me interessam, mas sim ideias particulares. Não sou um leitor de teorias.
O senhor conhece Beatriz Sarlo?
Estive com ela [à dir.] em um congresso no Brasil.
Não há nenhuma referencia de Sarlo em sua obra e vice versa.
Tivemos conversas interessantes. Não sei se a minha obra não corresponde ao que ela pesquisa e se eu não tive oportunidade de citá-la.
Sobre a memória não, mas sobre a posição do leitor, que é um tema que me interessa. Julgar ou ler uma obra por meio daquilo que não está dito construiria uma biblioteca de não citações. Uma coisa é dizer que determinado livro ou ideia não me interessa ou me parece muito interessante. Mas daquilo de que eu não falo, não quer dizer que não gostei. Não sei a quem cito ou não. Cito muita gente, mas o fato de não citar não quer dizer que não me interesso ou que seja contra.
Numa palestra em São Paulo, em 2010, o senhor disse que “a metáfora é a pedra fundamental da literatura. Mas ao mesmo tempo, ela confessa nossa dificuldade em comunicar as coisas de modo direto, sem ambiguidade”.
A metáfora é uma forma natural de nos comunicarmos, pois estamos constantemente tratando de explicar o que queremos dizer não apenas por meio das palavras que nomeiam, mas também das imagens que evocam. O uso da metáfora é uma confissão da debilidade da linguagem, pois ela não consegue nomear a plenitude do que pretendemos dizer. A metáfora ajuda a aproximar, uma vez que injeta ambiguidade na definição que utilizamos. Se disser que é uma tarde bela, tento comunicar os meus sentimentos a respeito da tarde. Se trocar por “é uma tarde como um incêndio no céu”, comunico algo a mais e, sobretudo, algo mais aberto, que permite às pessoas que leem incorporar suas impressões a respeito de incêndio, de céu e de tarde.
Vivemos na sociedade da imagem ou da palavra?
Somos animais narrativos, viemos ao mundo acreditando que ele é um livro que nos conta histórias, que a paisagem que contemplamos, o rosto dos outros, os ruídos que escutamos, estão nos contando histórias. Algumas delas passam pela visão e outras pelo ouvido, de maneira que é difícil dizer se uma sociedade é de imagem ou de palavras. Tem que ser das duas. Não existimos em um mundo em que as imagens não são nomeadas, tampouco existimos em um mundo em que a palavra não está ilustrada. Quando dizemos que vivemos em uma sociedade da imagem, esquecemos, por exemplo, da Idade Média ou da Grécia Antiga, que também eram sociedades de imagens. Ao afirmar que o Renascimento era uma sociedade da palavra, esquecemos que hoje tudo acontece por meio da palavra, com todos esses aparelhos eletrônicos se comunicando pelo verbo. Prefiro não eleger uma ou outra e viver numa sociedade de imagem e de palavra.
O que hoje significa ler?
Nossa vontade de interpretar o mundo através das histórias que acreditamos que o mundo nos conta faz com que sejamos leitores. Em uma sociedade de livros – e é claro que nem todas o são –, isso passa pela leitura de textos. Hoje a leitura apresenta distintas possibilidades, não somente em livros impressos ou em manuscritos, mas também na leitura eletrônica. Sempre ocorreram mudanças tecnológicas que fizeram com que lêssemos de forma distinta. O importante é não esquecer que podemos eleger e que não estamos obrigados a ler apenas de uma determinada maneira. Podemos ler um manuscrito, um livro impresso ou eletrônico, conforme a oportunidade. E também não se deve esquecer que a tecnologia eletrônica é a última em termos absolutos. Quem sabe dentro de dez ou vinte anos nossos netos considerarão a tecnologia eletrônica algo absolutamente antigo. Poderão ter um chip no cérebro que permitirá ler tudo o que hoje seguramos com as mãos.
Por que escrevemos?
Não sei dizer o porquê de modo genérico. Escrevo para não cair no desespero e na loucura.
Em A cidade das palavras o senhor discute o que nos mantém juntos e nos faz reconhecer-nos como parte de um grupo. E em contraparte nos diferencia dos estranhos a esse grupo. Como fica o homem na cidade contemporânea?
Cada sociedade trata de se definir para criar uma circunferência dentro da qual possa atuar. Ao criar esse círculo, cria-se o espaço de fora e a presença do outro que está além das muralhas da cidade. Ao mesmo tempo, faz com que os cidadãos que atuam dentro do círculo queiram buscar o que está fora. Nesse jogo de tensões entre o que está permitido e o proibido, o que está incluído e o que está excluído, é que acontece a vida da sociedade. Uma sociedade que não viva essa tensão é uma sociedade morta.
Que intelectual ou escritor o motivou em especial e o senhor recomendaria?
Já que estamos com a língua portuguesa, para mim uma das figuras essenciais hoje é filósofo português Eduardo Lourenço. Ele é um dos maiores pensadores atuais. Tem 90 anos e vive na França. No Brasil, a Companhia das Letras o publicou. Eu o conheci com Mitologia da saudade seguido de Portugal como Destino. Luiz Schwarcz, meu editor no Brasil, também vale a pena. Ele tem livros editados em francês, como o Eloge de la Coincidence. Seus trabalhos Minha vida de goleiro, Linguagem de sinais ou o Discurso sobre o capim merecem uma atenta leitura. Me interessa muito Richard Dawkins [autor de O gene egoísta]. É um darwiniano científico que propõe algo genuíno para entender nossa posição no universo. Mas é diferente se estou pensando em um ensaísta, num pensador, num escritor de ficção ou num poeta.
Algum canadense nessa lista de recomendações?
Sim. Para mim, a poeta mais importante é Anne Carson [à dir.]. Sua obra é extraordinária, como uma reinterpretação do mundo antigo. É uma obra original e creio ser a poeta mais importante dessas décadas. [Sem tradução no Brasil, sua obra maior seria Playwater: Essays and Poetry.] Alice Munro é uma contista maravilhosa e a chamam de “Tchekhov do nosso tempo”. [Prêmio Nobel de Literatura poucos meses após a realização desta entrevista, Munro tem ainda poucos livros editados no Brasil: Felicidade demais, Fugitiva (pela Companhia das Letras) e Ódio, amizade namoro, amor, casamento, pela Editora Globo].
O que é ser canadense? Há anos li num jornal australiano a carta de uma leitora que se definia como “cidadã britânica” de 5ª geração”. Essa percepção ocorre no Canadá, onde nem é preciso usar o DDI para telefonar para os EUA?
Não, nada a ver com esse sentimento da leitora da Austrália. A diferença é que o Canadá é um conglomerado de regiões muito distintas. Quebec não é Ontário, que não é como as províncias marítimas que, por sua vez, não são como a Colômbia Britânica, e assim por diante. Há lugares no Canadá em que as pessoas se sentem britânicas com ascendência inglesa, como na cidade de Victoria, por exemplo. Da mesma maneira que na cidade de Quebec se sente um enraizamento muito forte com a França – claro que com a França de Luis XV [risos]. Há isso, mas o país é muito mais aberto. Aqui na França, quando veem que sou canadense me perguntam: “Como? Se o seu nome é Alberto Manguel e nasceu na Argentina?”. Para o francês esta questão burocrática não termina nunca, é para sempre. No Canadá, se você se torna canadense, ninguém vai questionar onde nasceu. Jamais irão fazer essa pergunta.
Em Os livros e os dias, ao comentar O lsgo Sagrado, de Margaret Atwood [abaixo], o senhor escreve que a ideia de propriedade perde sentido na paisagem canadense.
No Brasil sabemos que há um grande problema com os industriais madeireiros que derrubam as árvores da Amazônia. Diz-se que a Amazônia “nos pertence desde sempre”. Quando se está diante de uma selva imensa e avassaladora, dizer que isso me pertence é algo absurdo para um canadense. Ele teve de lutar contra uma natureza invasora, difícil e dura, que é a selva canadense, e somente pode viver numa pequena franja que é a fronteira com os Estados Unidos. Então Margaret me disse uma vez que o verso do americano Robert Frost [abaixo, à dir.]: “A terra era nossa antes que nos tornássemos dela” não tem sentido algum no Canadá, um canadense nunca irá dizer que essa terra me pertence. A terra nunca foi nossa e nunca será [risos]. O sentimento é muito distinto.
O senhor disse que não lhe interessam as discussões de ideias genéricas, mas a relação com as propostas mais particulares.
Disse que a teoria não me interessa, as ideias, sim. A dificuldade da teoria é que ela se converte em dogmas e os dogmas não permitem diálogos. São imposições e respostas antes de saber quais são as perguntas.
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Carlos Costa é graduado em Teologia pelo Instituto de los Sagrados Corazones, El Escorial, Madrid (1972); licenciado em Filosofia (revalidação de estudos) pela Universidade Mogi das Cruzes (1973); bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (1978), mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela USP (2003 e 2007). É coordenador do curso de Jornalismo na FCL, instituição em que é professor titular de História da Comunicação na graduação do mesmo curso. Ministra cursos de edição de texto e de media criticism na pós-graduação lato sensu do Programa de Pós-Graduação da FCL, onde editou as revistas Líbero, Esquinas e Cásper. É autor de A revista no Brasil do século XIX: a história da formação das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro, tema de seu doutorado (Alameda, SP, 2012, 456 p.). Atualmente faz pós-doutorado em Letras (FFLCH-USP), com supervisão do prof. dr. João Roberto Faria: uma pesquisa sobre a obra do pioneiro Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), introdutor da caricatura no Brasil, analisando sua produção como teatrólogo, historiador, pedagogo, pintor e caricaturista.